A igualdade como fantasia, a equidade como treta

Não há como os factos da vida. Encontrei o meu amigo Jaime entre o preocupado, o curioso e o indignado. Chegara-lhe a factura do colégio de três dos seus filhos relativa a este mês: 270 contos!

Ele recordava-se de que as contrapartidas do apoio do PP na aprovação do Orçamento de Estado do ano passado envolviam qualquer coisa a respeito de compromissos do Governo quanto a que as deduções no IRS das despesas de educação com os filhos passariam a levar em conta o número destes. Ele próprio se lembrava de me ter lido a comentar umas resoluções recentes da Assembleia da República que apontavam para medidas que poderiam ir no mesmo sentido. E, aproximando-se a altura de fazer contas ao IRS, queria saber se eu sabia alguma coisa.

Desiludi-o. Que eu soubesse, não tinha havido a menor alteração de regime fiscal, nem estava previsto. Do que eu vira, ele não poderia deduzir de tudo o que tivesse gasto na educação dos seus filhos no ano de 1996 mais do que 320 contos no rendimento colectável de todo o ano. Foi isso que o deixou indignado.

O amigo Jaime não vive propriamente com muitas dificuldades. Não é dos portugueses que mais se pode chorar. Mas a mulher está desempregada há algum tempo, ocupou-se em voluntariado e a família vive do trabalho dele. Têm três filhos em "idade do liceu", como dantes se dizia, e o Jaime tem ainda um outro filho de casamento anterior. Está em mudança de actividade profissional, o que se reflecte em sucessivos apertos do orçamento doméstico e a rever escolhas e rotinas.

Querendo ajudá-lo, achei excessiva a factura do colégio desses três filhos. Disse-me que já tinha feito as contas e que, sendo muito, não era demais. Na factura, havia custos do mês e, sendo Janeiro, alguns custos também do primeiro trimestre, como actividades de complemento curricular e alguns livros ou material escolar adquirido no colégio. E, nos custos mensais, estava a parte referente quer a alimentação, quer a transporte. Destas, o Jaime admitia rever as decisões quanto ao transporte, depois de verificar se isso não complicava demasiado em questões de tranquilidade e segurança ou nos horários cruzados da família. Mas, quanto a alimentação, não - o que pagava não era mais do que o equivalente a 650$00 por almoço e 100$00 por lanche, não tinha muitas outras opções face aos horários escolares e não era possível arranjar melhor alternativa.

Tudo visto, o Jaime chegara à conclusão de que gasta por ano, só com o colégio desses seus três filhos de 10, 12 e 14 anos, um pouco mais de 2100 contos, de que estritamente escolares - isto é, excluindo alimentação, transporte e outros - são 1300 contos. E o que ele não percebe é por que é que disto tudo o Estado só "vê" até ao limite de 320 contos.

Uma bizarria da Constituição está nas provisões a respeito da dita "gratuitidade" do ensino. Um outro amigo meu há anos que me explica a falsidade destas afirmações, que, por serem mentira, diz que são "inconstitucionais por serem contra a natureza das coisas".

Como é que o ensino pode ser "gratuito"? Os professores não ganham e não têm direito aos seus ordenados? O resto do pessoal auxiliar ou administrativo das escolas prescinde também generosamente dos seus salários? As escolas não gastam e não pagam luz, água e telefone? Há fornecedores à borla do material vário indispensável ao funcionamento escolar? E aos terrenos e edifícios onde estão as escolas não correspondem custos ora de amortização, ora de conservação?

A verdade, verdadinha é a de que, quando as famílias não pagam, é o Estado que paga, isto é, os contribuintes em geral. E, por isso, o ensino público não é "gratuito", mas subsidiado. O que está certo. O que está errado é a discriminação gritante relativamente ao ensino particular e cooperativo. Discriminação contra as famílias que querem fazer essa escolha, aparentemente "garantida" na Constituição e nas leis como uma opção livre e em condições de igualdade. E discriminação contra as próprias escolas particulares e cooperativas que, com o decurso dos anos e as distorções acumuladas disto tudo, vêem agravar-se o fosso entre as condições que podem oferecer, mesmo em gestão apertadíssima, e a rede de ensino público em que nada se paga pela frequência. Ao mesmo tempo que, por isso, as escolas privadas, que conseguem sobreviver, ficam condenadas, pelo Estado, a evoluir num sentido cada vez mais marcadamente elitista - de "ensino dos ricos" - que não tem nada de socialmente justo, nem culturalmente acertado.

Igualdade, aqui? Nenhuma. Equidade ao menos, nalgum grau? Também não. O Estado há anos e anos que mente, a respeito de princípios fundamentais e da sua tradução efectiva nos factos reais da vida de cada um. Embalado e protegido por mitos como a "gratuitidade" - a mentira do século -, o que o Estado vem fazendo é a prossecução meticulosa, lenta e progressiva, de sucessivos atentados contra a igualdade de tratamento e a liberdade de ensino.

De contactos profissionais que tive no passado com o Ministério da Educação, e agora confirmei de boa fonte, resulta a verificação de que, calculando numa base homóloga de 10 meses (nas férias escolares, nenhum aluno paga), o custo médio por aluno da rede escolar pública, nas idades do 5.º ao 12.º ano, não andará hoje por menos de 47 contos por mês. E isto só em custos directos, pois as amortizações dos investimentos imobiliários andarão por aí perdidas numa conta qualquer do Ministério das Finanças. Por isso, o amigo Jaime, achando muito dinheiro, nem acha caro pagar de propina mensal 37 contos por cada um desses três filhos ou 43 contos efectivos por mês, levando em conta outros custos escolares dispersos ao longo do ano. Na verdade, ele, que é realista e de espírito prático, nem percebe bem como é que "eles", no colégio, que é um "colégio de padres", conseguem fazer esse equilíbrio.

O facto é que, não sendo dos que mais podem chorar-se, dificuldades da sua vida levam a família, hoje, mês após mês, a reavaliar e a discutir sobre se os filhos poderão continuar no colégio ou não haverá solução, senão saírem e inscreverem-se nalguma escola oficial. São avaliações difíceis: todos gostam do colégio; a qualidade é boa; é lá que os filhos andam desde há anos; têm lá os seus amigos e colegas. Mas, todavia, todos os anos, há notícia de um ou de outro colega que teve que sair, por razões semelhantes.

"Cadê" a liberdade de aprender e de ensinar? Onde está a liberdade de projectos educativos? Onde está a liberdade de escolha das famílias? Em parte nenhuma. O Estado cegou uma vez e parece que não mais quer ver.

A igualdade entre o ensino público e o privado repor-se-ia se o Estado estabelecesse que as famílias poderiam deduzir à colecta no IRS a totalidade dos encargos com a educação dos filhos - já que é esse o efectivo subsídio integral que, hoje, o Estado dá por cada inscrito na rede pública. Mas, não sendo de pedir muito, o amigo Jaime já acharia boa evolução para uma maior equidade se as famílias pudessem deduzir na íntegra esses custos, ao menos, ao rendimento colectável, como acontece com as despesas de saúde. Deixei-o a fazer muitas contas. E deixei-o sobretudo a suspirar por que estes anos passem depressa e que os miúdos estejam todos na universidade, pública, onde, se a trapalhada das propinas se mantiver, só passará a pagar 1200$00 por ano, como acontece hoje com o filho mais velho. Deixei-o a rir-se sozinho com essa perspectiva de futuro. Faz isto o menor sentido?

José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 18.Janeiro.1997

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