Ai, ai, ai, ai, ai...
Parecia isso. O que se ouvia pelo país, na 4.ª feira, eram infindáveis gemidos. O habitual "fórum TSF", então, nessa manhã, foi elucidativo na sucessão de comentários patéticos. Do lado da maioria e dos apoios do Governo, o que se escutou foi como que um ganir engasgado: que não, que não se percebia, que a "Expo" era um projecto nacional, que o Governo "sempre apoiara" o Comissário Cardoso e Cunha, que - pasme-se - estaria a procurar fazer-se um aproveitamento partidário da súbita crise... A sessão do Parlamento nessa mesma tarde foi do mesmo género: embaraço, atrapalhação, mãos pelos pés e pés pelas mãos. Tudo entremeado por considerações e apelos de patriótica devoção, que também abundaram na circunstância. Certamente à falta de melhor biombo.
Não sei se se pensa que o país é esmagadoramente constituído por um amontoado de tolos. Não é.
A culpa, dir-se-á, é uma vez mais da comunicação social e, no caso, do progresso das comunicações. Há algumas semanas, o Ministro Adjunto decidiu fazer uns desabafos fortes a respeito da "Expo-98" a uma rádio local transmontana, amontoando críticas, afirmando "logros" e proclamando o soberano cepticismo. Haveria, ali, mais um "buraco". O país inteiro o ouviu no próprio dia, ecoando pela rádio nacional, recitado na televisão e registado, depois, na imprensa, com a força solene das escrituras notariais.
Infelicidades. Já é azar - nem "desabafos locais" nos permitem... Fica o aviso: hoje, na era das "Internets", já não se pode suspirar no "Pulo do Lobo", nem escrevinhar no boletim escolar da Escola C+S de Oliveira do Meio, que pela tardinha já o país inteiro sabe. Fala-se baixinho e ouve-se alto.
O episódio nunca mais parou. Foi como se, sem razão objectiva que a final se conheça, se abrisse, fora da mão do próprio primeiro ministro, uma caixa de Pandora de partidarite aguda e de cinismo sem fim. De passo em passo, de avanço em recuo e de recuo em avanço, aquilo a que se assistiu foi a uma catarse irrepremível de sentimentos partidocráticos, com os seus despeitos e desconfianças, os seus ciúmes e raivinhas, as suas torpezas, cobiças e falsidades. Todo aquele conjunto de coisas que preenche o lado azedo das almas e que, por demasiado viscoso nos públicos costumes, não gosta de dizer-se frontalmente e de cara levantada. Negava-se pela frente - murmurava-se por detrás.
Corria-se o pano público - lançavam-se fugas de informação envenenadas. Proclamava-se confiança - insinuavam-se dúvidas corrosivas e até desconsiderações inimagináveis. Ainda bramou o primeiro ministro, exautorando expressamente de "imbecil" os que não percebem essa coisa de desvios na execução de obras públicas. Mas o destino fora traçado. A troca final de gracejos e piadas indirectas, nas audições parlamentares do Comissário e do ministro da Presidência, já dizia tudo. Metralhado pelas costas por uma guerrilha escondida atrás das moitas, Cardoso e Cunha tinha que sair. Saiu. Não podia fazer de outra forma.
Raramente se viu uma coisa assim. E menos se viu ainda que, depois de tudo quanto fizeram para afastar o Comissário, chegando a inspirar-se por aí algum tom de baixeza pessoal - certamente para dar mais força à nobreza do "encontrão" -, maioria e Governo exibissem tamanho espanto perante o inevitável desenlace, gaguejassem tanto na circunstância crítica e patenteassem tal desnorte, ao mesmo tempo que era posta a rodar - à velocidade da luz! - a habitual roleta dos notáveis para a apressada substituição.
Calhou em sorte o engº. Torres Campos. Deseja-se-lhe sorte. Que o país merece, a "Expo" precisa, e os cidadãos-contribuintes reclamam.
Mas, se o sentido de responsabilidade efectiva não regressa depressa, se - querendo alterar o estado da opinião - as frenéticas "fontes" prosseguirem, em desforço, o trabalho de crucificação do engº. Cardoso e Cunha, assim desencadeando as imprescindíveis respostas em defesa da verdade e da própria honra, poderá esperar-se o pior. O aparelho promotor da "Expo" continuará em abalos sucessivos de destino incerto, cada descontinuidade poderá representar mais uns milhões e não teremos tanto uma exposição ao mundo dos brios oceânicos, mas mais um género de estendal de lama para o pagode.
O que mais surpreende é que, tal como a questão decorreu, tratou-se de política pura. E, quando em política pura a descoordenação e desorientação são tão grandes, quando num "dossier" desses se conjuga tanta falta de competência política e incapacidade de avaliação política, a nota que fica é sempre muito má e de vergonha. Até porque a questão rolou em termos feios. E os povos têm esse hábito de guardarem por muito tempo a memória das coisas feias, que ferem a sensibilidade comum, e de assim avaliarem a prazo o carácter e a credibilidade dos governantes. A nódoa ficou. Veremos o pano.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 25.Janeiro.1997
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