O fantasma de Churchill
Não há ninguém que tenha dado alguns passos na política ou na sua ilharga que não tenha ouvido a história: Churchill ganhou a guerra; e perdeu as eleições a seguir. O facto está provavelmente mal estudado e mal explicado ou a história absolutamente mal assimilada e mal contada. Mas o exemplo é frequentemente usado, inspirando nos tempos mais cinzentos o pessimismo contra os grandes gestos, contra as reformas profundas, contra o enfrentamento das questões fundamentais.
Exemplo disto tínhamo-lo aqui há dias nas previsões de António Barreto para 1997. Dizia, a respeito da urgência das reformas nos sistemas de segurança e protecção social: "... o governo que tome a iniciativa daquelas reformas ficará na história. Mas talvez perca as eleições."
O problema é que, independentemente de estar ou não certo quanto aos efeitos eleitorais, António Barreto tem toda a razão quanto ao diagnóstico da convicção. A revisão da década de Cavaco Silva até poderia inspirar o sentimento contrário: nos mandatos em que manteve um ímpeto reformista acentuado, Cavaco, independentemente dos percalços de caminho, ganhou a maioria seguinte; no mandato em que o ritmo abrandou, no ano do tabu em que o ânimo se perdeu, foi aí que Cavaco e o PSD perderam.
Porém, seja como for, a convicção dominante é a que António Barreto ilustra, como um fantasma do fim de Churchill: se o problema é grande, bom é estar quieto. Governo ou maioria que mete a mão na massa pode ganhar grandes desafios, mas provoca tamanhas mudanças, e às vezes sacrifícios, que perde o mandato seguinte - parece ser ideia feita nos costumes nacionais. E, assim, este ano, excepção feita à questão do euro, abre com tão poucos auspícios quanto a transformações de fundo na sociedade portuguesa.
Sintomaticamente, a reforma do sistema político e eleitoral desapareceu por completo das agendas e das previsões. Não deixa de ser espantoso que assim seja. Após anos de debates, reconhecidos os malefícios do "funcionalismo político" na representação parlamentar, sobrefustigada a "classe política" e identificadas as grandes linhas de reforma, dir-se-ia que se iria começar por aí - por aquilo que, levando um pouco mais fundo um conceito corrente nos debates do fim dos anos 70, se dizia ser o "imperativo de refrescar a legitimidade" do sistema. Nada disso! Mesmo que venha a fazer-se o acordo para a revisão constitucional - sobre que convém manter prognóstico muito reservado -, nada assegura que venham a ser dados passos ousados nesta área nuclear; e muito menos que eles sejam a seguir eficazmente traduzidos numa reforma eleitoral profunda por lei orgânica, isto é, necessariamente por nova plataforma interpartidária.
Sem reforma do sistema político, que refrescasse a legitimidade, o carácter e a autoridade dos agentes principais, há outra reforma que também não se fará, na área cujo devir pode torná-la na mais explosiva de todas: a do sistema de Justiça. As questões estão mais ou menos identificadas. Mas não é crível que esta classe política com este sistema político eleitoral, ambos debilitados, alguma vez sinta o fôlego, a energia, a independência e a autoridade moral e política indispensáveis a enfrentar e superar os embaraços mais notórios. A sensação de uma classe política tornada refém do sistema - e, em particular, do Ministério Público - irá continuar. O que não tem nada de bom. Nada de democrático também.
Outras reformas mais substantivas, na Educação, na Saúde ou na Segurança Social, continuarão arrastando-se ou adiadas, para "não fazer muitas ondas". Na Educação, em particular, a curiosidade é grande a respeito das propinas, mas os espíritos já vão estando preparados para nova frustração.
De resto, vai dando a ideia de que o Governo está a perder o calendário nestas e noutras áreas. O bom senso aconselharia a que as reformas de conteúdo mais problemático tivessem sido feitas logo no início do mandato, quando a legitimidade governativa estava fresca e o estado de graça era abundante - e, sobretudo, quando ainda havia prazo por diante para, vencida a agitação que as pudesse rodear, o Governo poder capitalizar os efeitos e benefícios ainda a tempo das eleições seguintes. Mas, se 1997 passar sem que Governo e maioria PS mexam a sério nestes sectores - e noutros também carecidos de medidas estruturais "a doer" -, então poderá ser dado como certo que já nada farão, quanto ao fundo, até ao termo da legislatura. A partir de 1998, torna-se completamente improvável um ímpeto reformista retardatário, que fosse gerar controvérsias agitadas já em cima das eleições de 1999.
Até a regionalização estará comprometida outra vez. Por detrás de todas as conveniências e aparentes desencontros, foi a vontade de a fazer que foi falecendo. É pena. A reforma do sistema político e a regionalização, até nestes tempos de crescente integração europeia, seriam das alavancas mais poderosas para redotar de identidade e de energia nacionais de desenvolvimento este país algo dormente. Mas não! Os ventos não estão para aí.
Um caso recente serve de reflexão. Autoridades espanholas editaram uma publicação oficial em que, apagando fronteiras e com outros erros de caminho, "anexam" o Alentejo português à Extremadura espanhola. O facto já mereceu comentários e reacções, de nacionalista indignação. Sem dúvida merecerá justos reparos, pelos canais diplomáticos. Presta-se até a humor: como se os espanhóis, em lugar de nos devolverem Olivença, se aprestassem a "resolver" o problema pela integração do Alentejo todo inteiro.
Mas, independentemente deste abuso gráfico "castelhano", o mapa impressiona - porque ilustra as potencialidades de desenvolvimento do cada vez mais deprimido Alentejo. O que o mapa evidencia como eixos para Setúbal ou Sines são vias naturais para todo o interior estremenho espanhol; e mostra, assim, como um desenvolvimento regional integrado, de raiz e responsabilidade nacional mas atento às necessidades e oportunidades vizinhas, poderia tirar enormes vantagens não só do seu instilado dinamismo próprio, mas também de poderosos efeitos importados. Houvesse já uma autoridade regional na região do Alentejo e estas e outras questões poderiam ser equacionadas e potenciadas. Assim não. Continuaremos tão-só a defender heroicamente as fronteiras pátrias no Caia e no castelo de Monsaraz.
Governo e maioria afeiçoaram-se depressa a este deixar andar. Até porque da oposição tão-pouco parece vir muito de novo. E, na verdade, salvo se viesse o "novo partido" que se vai sugerindo por aí, não é natural, olhando a partir de hoje, que se esboce sequer grande ameaça ou marcante alternativa.
A ideia que parece ter-se instalado nos círculos governantes é a de que o êxito depende de se estar quieto nas questões fundamentais. À excepção do euro, nada mais estará para mudar. E, como mais ninguém está em condições de impor ritmo diferente, é assim que iremos seguindo, sempre no gerúndio. Não se ganhará nenhuma guerra; mas - pensa-se - ganhar-se-ão as eleições. Assim seja.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 4.Janeiro.1997
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