Os sábios

Vi as imagens na SIC e ouvi as queixas e os lamentos populares - "Toda esta água a perder-se para o mar..." Com as chuvadas deste Inverno, o caudal do Guadiana vai enorme. A sensação empírica é imediata: este Inverno chuvoso e o do ano passado, ou mesmo um só deles, teriam dado para encher a albufeira de Alqueva, se a barragem já estivesse pronta. Dá gosto ver. E dá desgosto saber. 

Vale a pena registar estas imagens e não as perder mais de vista, nem de memória. São o mais claro desmentido de um logro - para não dizer de uma mentira - que, ao longo de anos, foi dita e repetida por várias "consciências sábias", no combate encarniçado contra esse projecto nacional, velha aspiração popular alentejana: a ideia de que a albufeira é tão grande e a barragem tão "sobredimensionada" que "os espanhóis não deixarão vir água suficiente para a encher". Esta falsidade ouvimo-la repetir mil e uma vezes, às vezes com recurso a cálculos grosseiramente errados. Deu para enganar muitos - uma consciência política demasiado arredia da temática do desenvolvimento regional e a conjuntura adversa dos anos secos que precederam as chuvadas de 1995 e 96, ou secas homólogas na década de 80, foram o contexto adequado a que tais sábios propalassem a ideia errada. 

O mais espantoso, para quem conhece minimamente o antiquíssimo "dossier" de Alqueva, é que as chuvas destes dois anos não têm sequer nada de absolutamente extraordinário. Há alguma regularidade na sucessão de anos chuvosos, de anos médios e de anos secos. Os ciclos das chuvas no Alentejo estão longamente estudados desde os primórdios do antigamente chamado "plano de rega do Alentejo". Não é só a memória oral dos alentejanos mais antigos que o sabe; é o estudo histórico dos ciclos, em plano técnico e científico, e da sua repercussão nos caudais que o confirma. Essa é justamente uma das razões-quadro por que, desde muito antes do 25 de Abril, Alqueva foi projectada como foi, com a sua exacta dimensão e a sua ampla capacidade de armazenamento plurianual. É assim, de resto, com algumas das barragens já construídas. Será assim também com Alqueva quando, finalmente, estiver pronta e, como lhe cumpre, puder servir como mãe de um sistema mais vasto de irrigação. 

Simples ignorância, gostinho pelos lugares-comuns aparentes, soberba diante dos ensinamentos da experiência, sobranceria contra longas aspirações populares, egoísmo doutros interesses ou mero distanciamento centralista interromperam a construção da barragem de Alqueva, que já estava em obra à data do 25 de Abril. Há quase 27 anos. Depois foi uma sucessão de encontrões, de mal-entendidos, de confusões, de pressões e contrapressões, de estudos e reestudos, de relançamentos e novas interrupções. Chega a arrepiar quando, ao fim de tudo o que já se estudou e já se discutiu, se ouve alguns alegados "ambientalistas" a afinar cegamente pelas mais reaccionárias das resistências e a batalhar pela mutilação do projecto, reduzindo-lhe o paredão e a capacidade de armazenamento, ou encarniçando-se ainda contra todo ele. 

Não é de admirar o cepticismo, a desconfiança e a reserva com que muitos alentejanos - ou apenas solidários com eles - acompanham o estado actual do processo, sempre que se reabrem discussões "fundamentais" ou são postas dúvidas outra vez sobre o respectivo financiamento ou os seus contornos finais. Apesar de o empreendimento ter sido relançado e de estar a seguir - aparentemente de uma vez por todas - são muitos os que, escaldados com hesitações e tropelias de décadas, ainda perguntam: "Será desta?" 

É de esperar que sim. Mas 25 anos já foram perdidos, num empreendimento estruturante de efeitos sociais e económicos tão profundos que levará, em qualquer caso, algumas gerações a frutificar plenamente. No imediato, a sensação só pode ser frustrante: "Tudo isto a perder-se para o mar..." Às enxurradas de metros cúbicos. 

Todos os que publicam opiniões sobre este ou aquele assunto, num sentido ou no seu contrário, correm de algum modo esse risco - o da pesporrência do autoconvencimento. A reserva também me toca. No fundo, não há como os factos. 

Ali, é a questão da água. A água que é um recurso estratégico nacional e riqueza estimável. A água que é seguramente o mais valioso e precioso - porque muito escasso - dos recursos estratégicos para o desenvolvimento regional do Alentejo. Sem ela, não haverá possibilidade de desenvolvimento agrícola alternativo, nem de acentuado progresso industrial, nem tão-pouco de elementar fixação das populações. Com ela, tudo isso se torna possível, assim como outras potencialidades associadas de desenvolvimento do turismo e de serviços. 

Alguém esgrimir contra isto repetida e obstinadamente, contra um coro praticamente unânime de alentejanos (ou apenas solidários com eles), só pode provir de desconhecimento e de distância. Mas verificar que, ao longo de anos a fio, essas vozes - opinando sobre o Alentejo, mas contra ele -foram capazes de entravar, complicar, bloquear, adiar, comprometer, evidencia duas coisas: primeiro, que tiveram o poder disso; segundo, que, se o tiveram, é porque o poder estava mal organizado e distribuído. A propósito da descentralização regional e do seu debate, tem-se a mesma sensação. É curioso como a generalidade dos "media" foi manifestando uma orientação editorial dominante de forte reserva, senão hostilidade, contra a regionalização. Alguma pluralidade de opiniões tem ainda podido publicar-se, mas o desequilíbrio é manifesto. À distorção de enfoque não é alheia a circunstância de a maioria dos "media" ser lisboeta e de a sua cultura ser filha da visão da capital - temos todos muita pena das dificuldades com que se debate o cidadão comum no Alentejo, ou na Beira Baixa, ou na Beira Interior em geral, ou em Trás-os-Montes, ou por aí fora, mas, assim como assim, o melhor é deixar como está.

Não há como viver os problemas para lutar pela sua solução. Ora, as questões regionais do desenvolvimento - mesmo as mais indiscutivelmente estratégicas - são vividas longe dos centros que as decidem. Esse é o problema. Sobretudo quando, adentro do tradicional ciclo vicioso do subdesenvolvimento e do atraso, muitas das elites regionais emigram para a capital e aqui adaptam quantas vezes a cultura esplendorosa e cosmopolita do seu predomínio exclusivo, alheado e soberbo.

Na resistência à descentralização regional, houve, por exemplo, alguns que ensaiaram fazer projecções algo "terroristas" sobre os alegados custos da regionalização. Mas nenhum desses parece preocupar-se em quantificar ou esquematizar os arrastados custos sociais e económicos da não-regionalização. São enormes: em oportunidades perdidas, energias desperdiçadas, questões por resolver ou tão-só atender, capital e iniciativa dormentes, espaços que se desertificam, desordem demográfica, desordenamento crescente do território.

É como a água do Guadiana a desperdiçar-se para o mar. Algumas das vozes que juravam "não haver água" para Alqueva estão também entre os velhos do Restelo da regionalização. Um dia, como agora, chove-lhes em cima.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO,11.Janeiro.1997

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