O debate do princípio
Diversamente do
que, por táctica retórica, repetidamente sustentaram os deputados Odete Santos
e Sérgio Sousa Pinto, o debate de anteontem no Parlamento não foi um debate de
política criminal. O debate foi - e é - sobre uma questão exclusiva e principal de
direitos fundamentais. Tem - é certo - uma tradução, aliás mitigada, ao nível da
moldura penal, mas pela simples e directa razão de que, num sistema jurídico,
aceite o valor - que é a vida humana - e estabelecido o direito - que é o direito à vida -, não existe outro
quadro em que pudesse ser afirmado e salvaguardado. Não há outra sede jurídica
em que a vida humana e o seu direito pudessem ser afirmados e tutelados. Não é
uma questão civil ou comercial, não é de direito administrativo ou financeiro, não
é um problema de mais coima ou menos coima, não é um incidente disciplinar. A
presença no quadro penal decorre
da própria natureza da questão jurídica. Também não é uma questão
individual. Nem sequer individual da vítima. Muito menos individual de quem a
agredisse. O problema é de tal ordem que não se pode assobiar para o lado ou
para cima. Em abstracto só ou em concreto já, não pode haver indiferença. A
questão não é só de princípio ou de um princípio; é mesmo a questão do princípio.
E a tutela dessa vida humana que, nas circunstâncias de que se trata, não teria
mais ninguém que a defendesse, é impossível conceptualmente que coubesse noutro
lugar jurídico.
Saltando para a alegada "hipocrisia" da lei, já
seria um debate de política criminal se a pergunta tacticamente insistente da deputada Odete Santos
- "querem
as mulheres na cadeia?" - tivesse tido sequência, resposta ou
continuidade, porque aí se discutiria um qualquer endurecimento repressivo. Não
vi ninguém defendê-lo. Está certo assim. A lei explica-se no plano preventivo,
que é a primeira frente do direito e do direito penal em especial. Nem esta
afirmação entra em crise pelas estatísticas declaradas de 16.000 abortos por
ano, que o debate parlamentar fez inflacionar para 20.000. Tenho as
mais sérias dúvidas sobre que alguém possa afiançar o rigor destes números. Mas
o que seguramente ninguém pode dizer, como o deputado
Sousa Pinto, é que a lei "não evitará um aborto, não salvará uma vida". Como é que sabe?
Se já é grande o atrevimento intelectual da esgrimida segurança daqueles números,
que significariam em Portugal um retrato de 44 a 55 abortos por dia, o
que ninguém pode afiançar é que não seria pior se não fosse a lei e a consciência
social da ilicitude. Tudo leva a crer que seria. Sobretudo nos termos reais do
debate e da questão.
Outra afirmação
sintomática, na defesa dos projectos que não passaram, foi a de que
"ninguém é a favor do aborto", nem estaria em causa a "liberalização
do aborto". É claro que é esta que esteve, e que está, em discussão. Basta
ler os projectos, seguir todas as linhas do debate
ou ouvir as galerias
para ver que o que se busca
é a instituição do direito ao aborto livre e, nalgumas circunstâncias, o dever de ele ser feito.
A questão - que
divide de raiz como poucas - é
esta: quem defende e como se defende aquele que os pais enjeitem, que a
sociedade rejeite e que o Estado, no fim, também expulse? Pode haver o poder.
Mas qual o direito?
Se ninguém fosse
a favor do aborto, na sociedade e na política, o debate pura e simplesmente não
existiria. Seria, aliás, útil e verdadeiramente progressivo, pelo
esclarecimento real e verdadeiro, negando armas da demagogia, da desinformação
e do obscurantismo, que um dia aí se chegasse. Ainda não se chegou. O debate continua
- e voltará. Ninguém venceu.
Toca ouvir citar aqueles números
- como
normais. E toca parecer que não se estaca, um minuto sequer, a reflectir
nesses talvez 16.000 ou 20.000
seres humanos que, poucos anos
depois, pela ordem natural das coisas, aí estariam como qualquer de nós - como eu, como tu - e dariam,
por ano, para encher um estádio ou superar a lotação da maioria dos comícios que há por aí. Onde, como
quaisquer outros, estariam de sua viva voz, com mandatários ou sem mandatários, mas sem dependência deles, a exprimir adesões
ou a lutar por outros seus direitos, que esse, sim, é o sentido da história e
do direito.
Para que quase
no fim deste século XX ainda aí se esteja, é porque o confusionismo e o
desconhecimento ainda serão grandes. Infelizmente, há quem o alimente. Não é a
lei que empurra quem quer que seja para o aborto clandestino. O discurso
ultrapassado, mas reiterado, do "direito ao aborto" e da sua
afirmação como uma questão da sexualidade individual é que mais faz ainda por
isso. O aborto não é património da sexualidade. O único sexo presente já no
aborto é saber, como na pergunta comum, se "é menino ou menina". Essa
outra pessoa, sobre que se pergunta, ninguém a possui. Ninguém é seu dono.
Ninguém a tem. Ela já é. De propriamente ser.
Há claramente
muitos ao engano. E dói, magoa, aborrece, ver tal engano ilustremente
patrocinado e conscientemente alimentado. Falou-se demasiado em embriões. A
questão não é já, aliás, de embriões. O único embrião que neste debate está em
causa é o embrião de uma ideia: a ideia de que a eliminação física é, por um
lado, solução e, por outro lado, solução legítima para problemas pessoais ou
sociais. Não é.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 22.Fevereiro.1997
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