A reforma do poder local


O poder local é das realizações mais positivas do regime democrático de 1976. Fez renascer e fortaleceu o municipalismo e as suas tradições. Mas mantém-se inibido no modelo político de organização por deficiências e distorções que merecem reforma mais adulta. 

No executivo, a Câmara Municipal, onde a regra deveria ser a coesão e homogeneidade, prevalece ao invés a pluralidade partidária, podendo mesmo o presidente da Câmara ter de funcionar em minoria. No deliberativo, a Assembleia Municipal, onde a regra deveria ser a representatividade e a expressão proporcional das correntes locais, as maiorias acham-se completamente distorcidas por força da presença por inerência dos presidentes das Juntas. 

Com isso, perdem todos. Toda a desejável autenticidade e vitalidade da política local sofre rombos sucessivos. E todo o sistema acaba por favorecer um pernicioso "aparelhismo", em lugar de uma relação directa, aberta e vital com os cidadãos. Nas Câmaras, das duas uma: ou a oposição aí assenta arraiais, complica e bloqueia, minando a desejável eficácia de uma equipa executiva, quando o seu lugar próprio seria na Assembleia; ou tem de se entrar por acordos transpartidários forçados, muitas vezes ínvios, de distribuição de pelouros, de corresponsabilização ou de puras cumplicidades pessoais, os quais muitas vezes corrompem a natureza das coisas entre os partidos, afectando logo na raiz a boa saúde e a transparência de todo o sistema partidário. Quanto às Assembleias, a verdade é que têm visto larga parte das suas funções naturais, como fórum de debate e de grande deliberação, usurpadas por Câmaras vestidas de ''miniparlamentos'' - com o que pouca gente acaba por ligar ao que aquelas fazem, salvo os aparelhos que em seu tomo gravitam. Enfim, o sistema é tal ordem distorcido que, por arrasto habitual da coerência local das eleições, a participação plena dos presidentes das Juntas tem o efeito perverso de dar um bónus de reforço maioritário onde ele justamente não devia existir: no órgão de representação (a Assembleia), em vez de no órgão de execução (a Câmara). 

É evidente que há excepções. As qualidades de algumas pessoas e a pressão das realidades concretas sempre podem atenuar as deficiências do sistema. Mas o sistema favorece um funcionamento torto e seria bom revê-lo. 

O eixo da reforma que há largos anos defendo passa pela eleição directa do presidente da Câmara Municipal, individualmente e necessariamente por maioria absoluta, isto é, com recurso a segunda volta sempre que necessário. No fundo, é isso que as pessoas sentem fazer nas eleições - o protagonismo do presidente da Câmara integra boa parte da natureza institucional e popular dos municípios. Ora, se assim é na verdade do coração das pessoas, por que razão é que o sistema há-de combatê-lo, em lugar de o servir? 

Por isso a eleição individual; e por isso a necessidade de efectiva legitimação maioritária. Ao mesmo tempo, a segunda volta combate outro vício actual: o "coligacionismo". É certo que, na eventualidade de segunda volta, essas coligações terão de se formar "de facto" - só que serão sempre coligações eleitoras, autênticas, e nunca meras coligações de aparelho, com o risco de artificiais. E essas mesmas coligações eleitoras, genuínas, mediadas directamente pelo voto popular, é que ecoarão, em paralelo, no funcionamento das Assembleias, em vez das jigajogas a que tanta vez se assiste por aí. 

Quanto aos vereadores, isto é, ao resto da Câmara Municipal, seriam escolhidos e nomeados pelo presidente e sujeitos a voto de investidura pela Assembleia Municipal, ganhando a coesão e homogeneidade que devem caracterizar as equipas, sem mais rodeios, truques ou obstáculos. 

A Assembleia Municipal manter-se-ia eleita em lista proporcional a uma só volta - deve ser o espelho da realidade política local e da sua efectiva pluralidade, ganhando todo o protagonismo que lhe deve pertencer em exclusivo: o protagonismo da representação. 

No que subsiste uma dificuldade, que tudo poderia distorcer: a presença dos presidentes das Juntas de Freguesia nas Assembleias, a desfigurar a representação popular. Para o que só parece haver duas soluções: ou a recriação de um segundo órgão de concertação de interesses (um conselho municipal), para onde passaria a representação das freguesias, sozinhas ou em conjugação com outro tipo de interesses económicos, sociais e culturais, na tradição municipalista; ou, pura e simplesmente, o esclarecimento de que a Assembleia Municipal reuniria apenas com os seus membros eleitos nas sessões dedicadas ao voto de investidura da Câmara e a outras de importância similar: votação do Orçamento, eventual censura ou confiança à gestão do município, aprovação de planos, regulamentos ou taxas, etc. 

É entusiasmante a reforma do quadro político geral que a revisão constitucional vai antecipar. Não irá resolver, mas apenas rasgar as suas linhas e balizas - o consenso constitucional haverá, depois, de traduzir-se em novas maiorias de dois terços nas respectivas leis. E era bom que tudo fosse visto em perspectiva: sistemas eleitorais, revalorização do Parlamento, regiões administrativas, referendos, poder local. Que ganhem a representação, a autenticidade, o prestígio das instituições, a proximidade popular e o bom governo; e que percam o aparelhismo, a funcionalização, o tique das manobras, dos jeitos e dos truques, o desvio dos cartéis tecnocráticos ou das meras teias de interesses. Que triunfe a transparência e que se derrotem as manchas. Ganhando a verdade da política, numa palavra. E respirando-se melhor por todo o sistema. 



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 8.Março.1997

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