O falso drama

A semana abriu bem: o acordo para a revisão constitucional alcançado entre o PS e o PSD. Como fui dos que por vezes exprimiram algum cepticismo quanto a que fosse possível, gostosamente dou a mão à palmatória. 

Não é só o facto de haver acordo que é uma boa notícia. O acordo, ainda por cima, parece ser ele próprio um bom acordo em termos gerais. Razões para duplas felicitações a António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa, bem como às direcções políticas e bancadas parlamentares de socialistas e "laranjas". E esse clima deverá prosseguir, sem o que as reformas que se desenham para o sistema político e eleitoral acabarão por ficar "no tinteiro", já que a indispensável legislação subsequente também exigirá maioria absoluta ou mesmo de dois terços. 

Há por certo quem queira deitá-lo por terra. Mas esses só poderão ser os que não queriam, nem querem, revisão constitucional nenhuma - e, por isso, uma vez alcançado, já só lhes resta procurar que fosse desfeito. Importa velar por que não tenham muito espaço, nem consigam os seus intentos. 

Quer PP quer PCP reagiram prontamente contra este facto positivo. Mau passo. Sentem­-se marginalizados e alegam mesmo que o Parlamento, todo ele, teria sido marginalizado. Não é verdade. Há aqui puramente um falso drama. Acusou-se mesmo uma "falta de transparência". Como "falta de transparência", se tudo tem que ser concretizado, discutido e votado na Assembleia da República? Aos olhos de todos. 

É conhecido de todos que a revisão constitucional, para se fazer, necessita de maioria de dois terços. E, dado o melindre próprio das disposições constitucionais e a interacção entre muitas delas, não só não é realista, como não é de todo possível que qualquer revisão se faça sem um acordo global de princípios entre partidos que, entre si, somem os dois terços indispensáveis. Não pode ser de outra maneira. 

O processo do acordo é, por isso, inteiramente normal e não ofende minimamente as funções parlamentares. Antes as viabiliza. Isto é: se não fosse o acordo PS-PSD é que o Parlamento veria totalmente frustradas as suas funções, pois se acharia bloqueado em absoluto e nenhuma revisão poderia ser feita. A Comissão Eventual faria a trouxa e iria para casa com um zero absoluto: cada deputado ou cada grupo porventura muito contentinho com a sua soberba solitária; mas todos de mãos vazias e com resultados nenhuns. 

É, aliás, assim em todas as matérias legislativas e em todos os parlamentos do mundo - o debate parlamentar não prejudica, antes aconselha ou favorece, a realização em simultâneo de conversações interpartidárias que proporcionem os consensos indispensáveis, que cruzem projectos e propostas, ou que facilitem a ampliação de maiorias. E, se é desse modo com qualquer tipo de legislação ou questão política, por maioria de razão o será quando está em causa legislação-quadro e, acima de toda ela, a legislação constitucional. Não há nada de extraordinário. 

Só que este falso drama que ecoou pelas bancadas e pelos jornais representa ao mesmo tempo um grosseiro erro de tiro. 

É de lamentar que PP e PCP tenham privilegiado o ataque ao método, onde não têm qualquer espécie de razão. O que se compreenderia que fizessem é que criticassem - se fosse de criticar - a substância do acordo em si e que nos dissessem, posto que saibam, que matérias das que vão ser reformadas não o deveriam ser e que questões das que ficaram para trás deveriam ser mudadas e em que sentido. Com isso ganharíamos todos. Assim... é puro disparate, ribombar demagogo e perda de tempo. 

O acordo não encerrou nem proibiu o debate. E o que todos nós gostaríamos de saber, ponto por ponto, é o que PCP e PP gostariam de fazer de diferente ou de inteiramente novo. Com isso se enriqueceria o próprio debate político e a agenda constitucional - quer ainda esta, quer porventura já também a da próxima, passados mais cinco anos. Mas reduzir a questão à metodologia seguida, sabido que esta é incontornável nos termos do próprio sistema, é pobrezinho e confrangedor. Assim, afinal, é que se marginaliza a Assembleia...


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 1.Março.1997

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