O segredo de estalo

Tenho seguido com algum interesse os rastos da polémica sobre o acordo de revisão constitucional PS-PSD e as mossas que foi deixando, nomeadamente pela área dos socialistas. Aparentemente, "aqui há gato". 

Foi mais ou menos assim, nos factos públicos. Primeiro, soube-se que havia acordo - isto é, soube-se do facto antes de se conhecer o texto propriamente dito. Surgiram vozes a saudar o acordo e outras a contestá-lo. Mas, do texto, ainda nada. Logo começou a polémica dentro da agitada bancada socialista, com as sequelas que se conhecem. E logo, na imprensa, salvo erro n' "O Independente", se deu nota de que haveria um "acordo secreto". Rapidamente isto foi cabalmente desmentido. E, dias depois, com as querelas ainda a rolarem e as feridas a sangrar, foi assinado e divulgado em cerimónia pública o texto oficial do acordo, ao modo de sutura final, com tintura de iodo e esparadrapo. 

As discussões continuam. E há partes essenciais da discussão que é impossível perceber. Isto é, falta saber se tudo o que se sabe é tudo quanto se deveria saber. 

O mistério maior é na parte referente às regiões autónomas. Acompanho algumas das preocupações manifestadas. Mas já li, de trás para a frente, umas cinco ou seis vezes, o texto do acordo de revisão constitucional que o PÚBLICO divulgou, na íntegra, no dia 6 de Março. E, independentemente da relativa indefinição de algumas questões aí enunciadas apenas de princípio, não encontro lá exactamente aquilo que merece as críticas mais severas de Vital Moreira e de outros comentadores. Por outras palavras, estes, face àquilo que é público, criticam mais, bastante mais, do que consta do acordo que se conhece. O que faz retornar toda a curiosidade sobre se existirá, ou não, um outro tal de "acordo secreto". 

"A Capital" de anteontem voltava, com alarido, à questão e a sua directora escrevia mesmo o seguinte, depois do extenso folhetim sobre as implícitas trapalhadas: "Deste modo e ainda segundo as mesmas fontes, neste momento existem pelo menos três textos sobre as negociações. O verdadeiro, do qual só os negociadores têm conhecimento; o elaborado por José Magalhães que foi entregue aos socialistas e à imprensa; e ainda o de Marques Mendes que também foi publicitado." 

Desde logo, cabe comentar que, se for assim, não é assim... É que, se for verdade que existem estes três textos diferentes, então os textos do "acordo" não são sequer só três, mas são quatro. A esses três textos haverá que acrescentar ainda o outro - o único oficial, o único que se conhece, o único que como tal é público, o único que vincula, aquele sobre que versou a cerimónia solene que, com pompa, reuniu os dois líderes parlamentares sob as bênçãos atentas de António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa. E pior: serão também dois, e não um só, os acordos "verdadeiros". Haverá o tal misterioso acordo "verdadeiro, do qual só os negociadores têm conhecimento". E há aquele efectivamente verdadeiro, isto é, o que publicamente foi assinado e o que todos realmente conhecemos. 

É cedo para saber com clareza o que é que verdadeiramente se passa. A menos que todos contassem tudo o que sabem, o que manifestamente lhes não apetece. E, como há dias aqui observava o director-adjunto José Manuel Fernandes em resposta a uma carta de Mota Amaral, haverá, de facto, que aguardar por que se conheça o articulado efectivo da revisão constitucional. Ou, então, vamos continuar a falar de alhos e de bugalhos: uns guiando-se apenas pelo que foi público; outros revelando que, afinal, já sabem mais do que se publicou. 

Aquele mistério, porém, sobretudo em matérias altamente sensíveis da organização do Estado, não tem nada de saudável, não é (ou não foi) bom conselheiro e poderá, a seu tempo, vir a deitar tudo a perder. Pode ser indício de uma grandessíssima trapalhada. Não só as querelas que já se viram; mas as que ainda estarão para ver-se. 

É fácil perceber porquê. Quando se diz que há três acordos sobre a mesma questão e esses ditos acordos são diferentes entre si, isto quer dizer exactamente o contrário do que se diz. Quer dizer que há desacordo. Quer dizer que, afinal, não há acordo nenhum. 

É isso que estaremos para ver. Se o acordo verdadeiro PS-PSD efectivamente versou sobre textos diferentes daquele que foi assinado diante do público, então todo o processo de revisão constitucional poderá vir ainda a explodir outra vez, a seu tempo. 

Quando, chegando aos artigos da maior polémica, o "acordo" não conseguir concretizar­-se e os negociadores tropeçarem, afinal, com minutas não conciliadas e inconciliáveis. Não sei, ninguém dos que estão por fora sabe, se terá sido assim. Como em todos os segredos, quem os conhece e os guarda nega-os sempre. Mas, se foi, é de estalo. E irresponsabilidade de mais. A seu tempo se verá. 

P.S. - Sobre o caso de Oleiros e de João Garcia, faço minhas as palavras de Eduardo Dâmaso e de Augusto Santos Silva, aqui há dias. Só confunde as coisas quem não entendeu ou não quer entender. João Garcia, além de envolvido em tráfico, irá ficar desmascarado ainda como um aldrabão. Sozinho, terá feito mais dano à comunidade cigana do que todos os outros juntos. E Pedro Bacelar de Vasconcelos, o corajoso governador civil, continua a ser o mais honrado e vertical dos servidores públicos que alguma vez vi servir e enfrentar uma situação tão difícil. O direito é esse: contra os traficantes; contra os arruaceiros. De qualquer sorte. 


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 22.Março.1997

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