Um tiro no navio-almirante, Vitorino ao fundo
A crise aberta no Ministério da Defesa com a substituição do chefe do Estado-Maior da Armada tem que se lhe diga. O fundamental é que ninguém percebe muito bem o que se passou, nem o que se passa.
O estatuto de direitos cívicos limitados dos militares tem destes efeitos, se os políticos se não cuidam. Como os militares não podem intervir normal e regularmente, ao mesmo modo que os civis, no tratamento e abordagem pública das suas próprias questões - e muito menos nas restantes matérias de interesse geral do país -, os políticos podem, se quiserem, ir decidindo livremente, sem prestarem muitas contas a quem quer que seja. O silenciamento estatutário dos militares poderia ser suprido pela intervenção subsidiária de políticos civis que, devidamente informados, animassem e sustentassem tal debate. Mas há anos que nem sequer é assim.
Um quadro decisório desse tipo pode parecer cómodo. Pura ilusão. A aparente facilidade de um tal sistema de decisão, com pouca gente ou ninguém a "atrapalhar" aos olhos da opinião pública, é, afinal, a vulgar "facilidade" das ditaduras. Sabe-se o que isso é: a facilidade armadilhada. Atritos silenciados acumulam-se, o desgaste da autoridade cresce e, adiante, num problema pontual, o sistema perde capacidade de contenção e tudo parece posto em causa.
Quando se ouvem por aí vozes clamando, sem moderação nem contraponto, pela dita "normalização" das instituições militares ao modo das experiências civis, é indispensável darmo-nos conta da falsificação que essa meta constitui. A "civilização" das Forças Armadas nunca poderá ser plena e pouco poderá progredir no eixo distintivo essencial - a total igualdade ao nível dos direitos cívicos. Ou será que os "civilistas" admitem e querem a plena liberdade de expressão para todos os militares, o livre curso no seu seio de todos os debates, a liberdade de filiação partidária dos membros das Forças Armadas, o apagamento total do quadro complexo de deveres que caracterizam a hierarquia e marcam a cadeia de comando?
É evidente que não. E basta ver as reacções iradas de tantos "civilistas", à cata de uma forma qualquer de sancionar-se uma acta inconveniente do Conselho do Almirantado, para aferir do real quilate e do calibre de tais convicções democráticas e "civilizantes". O movimento dito "civilista" tem muito de demagogia e de desfoque, porque nunca poderá atingir a plena paridade civil - e deve por isso ser olhado com as maiores reservas, como acontece a respeito da extinção dos Tribunais Militares, que ainda estamos para ver o que irá dar. Tal movimento dito "civilista" é ainda ofensivo e, a prazo, desestabilizador porque conduz o militar à condição de um proscrito ou de cidadão desqualificado: nem para Presidente da República, nem para a PSP, nem para o Instituto de Defesa Nacional, nem para... se chefiar a si próprio.
O modo de funcionamento das instituições militares e de tratamento com estas antes exige cuidado especial no relacionamento com os seus órgãos e as suas chefias. A estrutura corporativa das Forças Armadas não é só fruto da sua tradição ancestral, nem só a tradução compreensível no plano orgânico, mesmo em tempo de paz, do único modo de funcionamento ajustado ao desempenho da sua missão, toda ela concebida para tempos de crise: uma hierarquia rigorosamente vertical e fechada. E essa estrutura corporativa é também, no plano geral da organização do Estado, com estatuto e função de uma garantia, o corolário e o contraponto adequado de um quadro geral de privação ou limitação de direitos cívicos que marca a condição militar. Como os indivíduos militares não são livres de se exprimirem, a corporação organiza-se e exprime-se ela, usando para isso os canais estabelecidos.
Foi aqui que o ministro Vitorino tocou, na sucessão do CEMA. E não é de estranhar que esse simples facto detonasse várias fricções: as próprias do facto; e outras acumuladas de antes. As referências de que tais incidentes poderão repetir-se de novo a propósito da sucessão do chefe do Estado Maior do Exército só podem gerar grandes preocupações.
Até porque há muitos que, agora, procuram picar o ministro Vitorino a reagir "exemplarmente" e a retaliar. Mal avisado será, se o fizer. Como, de facto, não houve qualquer indisciplina, o melhor é registar; procurar acertar nas próximas vezes e sobretudo melhorar o desempenho regular. Seria muito mau um ministro reactivo, agindo porque se o provoca e não porque pensa por si mesmo.
Mas o pior de tudo é a geral obscuridade de tudo isto. É verdade que a situação real é a de que o ministro põe e a Associação 25 de Abril dispõe? Será que esta associação está a agir sobre a estrutura das Forças Armadas como um partido militar "de facto"? A extinção do Serviço Militar Obrigatório é tão pacífica quanto tem parecido? E será funcional e boa para o país e para os interesses da sua defesa? Será mesmo que, desde há anos, a única política de equipamento militar é mesmo a "política do caruncho", isto é, o desarmamento sem critério, por via do obsoleto forçado e da sucessiva desorçamentação? Qual a missão e quais as missões? O que faz e o que pensa o CEMGFA? E a pergunta de todas: que política de defesa?
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 29.Março.1997
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