Droga de Estado
Uma característica das toxicodependências é serem uma doença de negação. A negação assume várias formas: a negação do problema, a negação da extensão do problema, a negação dos mil e um problemas associados ao problema, a negação de causas do problema, a negação dos efeitos do problema, a negação dos vários riscos fatais do problema. E essa negação não é apenas do próprio, mas de muitos outros à sua volta: familiares, amigos, a sociedade em geral. A negação do próprio alimenta-se da negação dos outros.
O próprio normalmente acha que "isso só acontece aos outros" - ninguém escolhe ser toxicodependente. Escolheu-se experimentar; escolheu-se debelar "os nervos"; escolheu-se "ser imaginativo"; escolheu-se "divertir-se"; escolheu-se ter "sensações novas"; mas ninguém escolheu ficar dependente. A família muitas vezes acorda tarde e várias vezes esconde, envergonhada, só e confundida, mortificada em inúteis sentimentos de culpa. Os amigos durante muito tempo acharam divertido, alimentaram a "excentricidade" crescente, até eles próprios abandonarem o "agarrado" ao resto da sua sorte - alguns dos mesmos amigos virão, depois, a reproduzir a mesma sorte. A sociedade em geral sabe pouco e tende a moralizar em excesso, mais do que a compreender: tão depressa tolera e fomenta as causas, como se precipita a enfurecer-se ou a renunciar perante os efeitos.
A negação é a maior insanidade desta doença. É o maior obstáculo à recuperação dos afectados. É o seu mais terrível "handicap". É a maior dificuldade dos programas de prevenção primária - muitos dos que ouvem acham que irão escapar, que são "diferentes", que "nunca chegarão aí". E o alimento da negação é o melhor terreno por onde o mal caminha, ou se mantém, ou aumenta; e prolifera.
O debate sobre a liberalização ou a despenalização das drogas é a maior machadada em anos e anos de prevenção primária. Machadada para trás, machadada para diante. O que, desse debate, muitos retiram, no eco social que fica, é o directo alimento da negação, a convicção da licitude, a crendice comprometida no carácter inofensivo ou no modo "gerível" dos consumos - fantástica ilusão, que é a fatal.
Não se pode evitar o debate, mas era bom que acabasse depressa. Que as opiniões se trocassem, que o esclarecimento ficasse feito e que se voltasse a ter uma política clara. O problema é tão grave e tão sério, que não há maior fomento da negação do que ver o Estado possuído pelo cepticismo e a sociedade tomada pela cultura da dúvida sistemática. Muitos dos que irão morrer nos próximos dez anos serão filhos deste debate.
Alguns dos defensores da liberalização ou da administração da droga pelo Estado sustentam - creio que de boa-fé - que os traficantes se alegram com a actual política repressiva. Não é verdade - alegrar-se-ão, quando muito, com a brandura, as insuficiências, as hesitações, a tibieza e alguns desfoques da actual política repressiva. Mas, ao contrário, já é verdade que os traficantes se alegram com o presente debate, que lhes escancara o mercado e promove o negócio. Muitos e muitos milhões de contos e de dólares já estão a fazer-se, por todo o mundo, e vão continuar a fazer-se, fruto e produto deste debate.
Há dias, a administração da droga pelo Estado era defendida assim: "O toxicodependente em fase terminal tem direito à sua dose." A ideia "terminal" está rigorosamente certa - as toxicodependências são uma doença mortal. Nem é tanto a morte que mais dói, pois todos lá chegamos de uma ou de outra maneira. Mas é a morte terrível, a morte física precedida da morte pessoal, a degradação progressiva, a decomposição interior, uma gangrena de angústias, ansiedades e medos, a brutalidade da total alienação da liberdade, a ruptura da personalidade própria, a sementeira de violência que vai deixando por todo o lado. A ideia de "fase" já não está tão certa, porque a dinâmica é conhecida, compulsiva e infelizmente insuperável, quando não cortada e interrompida.
Mas a ideia da renúncia, da desistência, do abandono vestido de "direito à dose", é particularmente agressiva. Todo o toxicodependente é recuperável. Pode, ou não, recuperar-se; mas é recuperável. Depende de todos e, a certa altura, dele próprio. Não está certo que desistamos no sítio errado e que, como Estado e sociedade, lhe administremos a morte, em lugar da recuperação.
Explodirão os consumos, os agarrados e os "terminais"; e nem sequer o crime diminuirá por aí. Toda a experiência de quem o fez o demonstra. Antes aumenta o crime: o crime dirigido ao consumo, porque o que se administra nunca é suficiente; a criminalidade dispersa sob o efeito dos consumos; e a criminalidade organizada do tráfico, estimulado num mercado paralelo, que se instala, que descobre novos álibis e que prospera sem fim. Aliás, desgraçadas das nossas farmácias, se um dia forem convocadas a tal negócio - se já hoje é como é, inseguras, gradeadas, vítimas de assaltos, encurraladas a parecerem "bunkers" quando de serviço nocturno, o que será quando guardarem a "substância" cobiçada por quem se move por pura compulsão.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 19.Abril.1997
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