O miradouro da paz
Ontem, exactamente 21 anos e cinco meses sobre a data da sua independência, Angola pode ter engrenado finalmente nos caminhos institucionalizados da paz, com a formação do primeiro Governo angolano de unidade nacional. Não é a primeira vez que palavras e ideias destas se escrevem. Era bom que fosse a última. É bom que o futuro não mais desminta, nem atraiçoe esta esperança.
Angola tem, entre várias outras pulsões magníficas, esta coisa extraordinária: o modo como o optimismo brota aos primeiros sinais de esperança, por frágil e magoada que possa ser.
Há cinco anos, no pós-Bicesse, depois dos anos compridos e duríssimos que marcaram nesse país o estertor final da guerra fria, Angola parecia ter-se transfigurado de repente. Nada parecia poder pará-la e de todos os lados choviam e multiplicavam-se os sinais de confiança e de entusiasmo. A esperança era sem reservas. A alegria e o colorido do lançamento de uma democracia anunciada eram totais. A actividade económica reanimava-se com projectos e iniciativas em catadupa. Muitos exilados fizeram planos de regresso. O país magnífico abria-se outra vez como Terra de Promissão.
E, todavia...
Os incidentes pós-eleitorais conduziram a mais três anos de guerra - e que guerra! Mais violenta do que alguma vez fora, mais brutal e mais sangrenta, desumana e cruel para além dos limites insuportáveis, fratricida como nunca. Na confiança ilimitada pós-Bicesse, as águas, os campos e as gentes misturaram-se. E, quando as armas dispararam outra vez, não eram mais apenas dois contendores separados que voltavam a confrontar-se; mas era todo um país inteiro que se dilacerou, rasgando-se por todo o lado, no mais fundo do seu tecido humano e social, por massacres urbanos inomináveis, ódios e rancores cavados ao mais negro das almas, barbaridades sanguinárias, destruições em massa sem conta.
Nesses três últimos anos de uma longa guerra - demasiado longa - o povo angolano sofreu como nunca e Angola provou o mais absurdo do pessimismo: é sempre possível fazer pior.
Lusaca foi outra luz, em 1995. De então para cá, os progressos têm sido lentos. O mérito dessa lentidão é ser sinal de prudência e penhor de segurança. Houve avanços e recuos, compassos de espera sobre compassos de espera, momentos em que tudo quase parecia comprometido outra vez e, logo, novos passos de reanimação do processo de reencontro. As chagas do fracasso de Bicesse estavam frescas e abertas. Já não se confiava - queria confiar-se. A esperança já não surgia com a mesma franqueza e espontaneidade - queria-se voltar a tê-la, mas havia que atravessar um deserto de cepticismo e dificuldades, de reservas e desconfiança. A comunidade internacional, a vários títulos, por várias vezes e de vários modos, houve que pôr pressão e que marcar o caminho. Ainda não acabou.
Pouco a pouco, lá se foi fazendo. A superação da questão do estatuto de Savimbi, a plena constituição - finalmente - da Assembleia Nacional eleita em 1992, a posse solene e promissora do Governo de unidade e reconciliação nacional parecem ser sinais seguros de que desta... isto vai.
Mas permanecem os sinais sombrios. A ausência de Savimbi das cerimónias de ontem e a pendência arrastada das questões decisivas da desmobilização, do Exército único e da Polícia Nacional continuam a motivar reservas e a maior prudência na análise e nos prognósticos definitivos. E há o cancro das minas, por todo o lado.
O trabalho que falta é eminentemente político; e ao mesmo tempo humano e pessoal. Constrói-se no desanuviamento dos espíritos e na descompressão final dos corações. Cimenta-se na consolidação de laços de confiança mútua e na concretização dos passos que faltam. Mas o terreno não está ainda definitivamente sólido. Nesse dia, quando o estiver, a festa será de novo total. Angola recuperará, de imediato, uma actividade febril em todos os domínios do progresso e da reconstrução. Uma febre de saúde outra vez.
Há, neste processo, uma evidente promessa retardada e contida. Que às vezes exaspera - apetecia ir mais depressa. A lição de Bicesse, porém, foi a de que, antes retardada e segura, do que violentamente estragada mais uma vez.
Destaque: Angola tem, entre várias outras pulsões magníficas, esta coisa extraordinária: o modo como o optimismo brota aos primeiros sinais de esperança, por frágil e magoada que possa ser.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 12.Abril.1997
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