AD contra a AD
Valha a verdade que o PP resolveu bem a salgalhada do acordo para as eleições autárquicas no distrito do Porto. Transitoriamente bem, mas bem em qualquer caso. A pausa lúcida de 15 dias, enquanto Cervan andava por Moçambique, fez bem a muita gente e permitiu uma reformulação serena das questões, em vez da desforra a quente para que ferviam as emoções.
As contradições, porém, são reais. E o problema para o PP está, agora, em estancar só por aqui as "excepções" à linha votada em Congresso e especificada em Conselho Nacional. Os embaraços de Manuel Monteiro nalguns momentos da entrevista a Margarida Marante são sinal disso mesmo. Vai ser difícil.
Resumindo os termos em que Manuel Monteiro colocou o ponto actual dos seus encontros e desencontros com o PSD, a ideia que fica é esta: o PP tem pressa nas ideias; o PSD tem pressa nos votos.
Este tipo de diferença de enfoque tem terreno para andar. O PP - herdando aí, aliás, uma tradição e uma circunstância do CDS anterior - gosta mais das "ideias" do que do mero poder e, como nunca foi governo por si, tem menos dependências a este respeito. O PSD, por seu turno, nunca fez grande gala nas "ideias" (o que é uma pecha dos partidos de largo espectro, os chamados "catch-all parties") e sempre manifestou um prevalecente tropismo pelo poder - de resto, tem saudades, o que é sentimento legítimo.
O diálogo global entre PSD e PP é assim. Diz o PSD: "Anda dançar comigo" - porque basicamente o que quer é ir bailar outra vez. Responde o PP: "Vou dançar, mas a música é minha" - porque fundamentalmente o que quer é comandar a melodia ou, ao menos, alguns compassos.
O problema para a direcção do PP é, afinal, a própria ideia que a direita popular - ou, se se quiser, o povo de direita - tem das "ideias". A direita em qualquer parte do mundo tem uma ideia geral de si mesma: o poder é connosco. E, na melhor das hipóteses, o conceito que fazem da esquerda é o de que são uns rapazes simpáticos para estarem a reclamar na oposição, mas um bando de irresponsáveis e de loucos no exercício no poder. A ideia principal do povo de direita é a de que é de direito natural propriamente dito que mande a direita e que a esquerda esteja fora do poder. Há um coro por aí, entre "bases" e aparelhos: "Já não se pode com estes tipos." Os "tipos" são Guterres e o PS. A vontade que faz caminho centra-se nisto: "É preciso mandá-los abaixo." Essa é a principal vulnerabilidade da direcção do PP diante de cada aceno do PSD - a real ideia de fundo do povo de direita coincide com a atracção do PSD pelo poder e com a real capacidade do seu aparelho em o conquistar e ocupar. Não é por acaso que, em 23 anos que vão passados sobre o 25 de Abril, o PSD esteve no poder em 19 desses anos.
Mas, voltando às "ideias". Monteiro avançou duas, que seriam centrais: regionalização e Europa - seja o PSD contra ambas e a aliança está feita. Com o território político tal como está ocupado ao centro e à direita, o risco é real de que isto aconteça. Quanto à regionalização, o PSD está maduro para dar a cambalhota total: foi Cavaco Silva que desferiu o mote em 1994, o PSD tem sido o principal sabotador - infelizmente não o único - do processo e quase já não há por ali, nos seus tenores, sombra de uma convicção. E a Europa poderá ir, a seu tempo, pelo mesmo caminho. Nunca frontalmente, que o PSD tende a guardar a possibilidade de variar consoante o modo como pressente "a onda". Mas no desenho das políticas reais. Se, no momento azado, com aquele instinto pelo poder que é a sua marca principal, o PSD sentir que é por aí que tem que ir para reconstruir o quadro de retoma do poder, assumindo-se anti-regionalista hostil e vestindo-se de eurocrítico ou, no mínimo, de eurocéptico, é por aí que irá sem pestanejar.
A ironia desastrosa é que esta miniagenda adiantada por Monteiro para a "nova AD" é exactamente o inverso da AD que houve. Em 1980, com Sá Carneiro e Freitas do Amaral a política europeia foi assumida declaradamente como a prioridade das prioridades da política externa portuguesa. E os únicos passos continuados e consistentes que se deram para concretizar as regiões administrativas foram-no exactamente no período de 1980 a 1983. Morta a AD prematuramente, na crise arrastada que se seguiu a Camarate, nunca mais se prosseguiu com determinação e andou-se de logro em logro.
Respigo do Programa Eleitoral de Governo da AD, apresentado às eleições antecipadas de 1979: "Descentralizar o Estado (... ) em três planos fundamentais: o das regiões continentais, o dos municípios e o das regiões autónomas insulares"; "A primeira prioridade do Governo da Aliança Democrática é a plena integração de Portugal na Comunidade Europeia". Recordo duas ideias-força do Manifesto Eleitoral da AD em 1980: "Consolidar a democracia e regionalizar o país"; "Modernizar Portugal e avançar para a Europa".
A tal "nova AD" que por aí se acena, esboça e vai tecendo é, 20 anos depois, a segunda morte de Sá Carneiro e de Amaro da Costa. A sua agenda, explícita aqui, implícita acolá, é uma verdadeira contra-agenda. Não é para fazer AD - é para desfazer. Politicamente é um desmancho.
Tem que haver uma resposta política ao centro e à direita contra este resvalanço das coisas que estão. Porque é mentira que todo o centro e toda a direita sejam contra a Europa e contra as regiões. E a verdade é que vastos sectores estão a ser mal representados: hoje nas tribunas; amanhã nas cadeiras.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 17.Maio.1997
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