Rabo escondido com o gato de fora


Se a regionalização outros méritos não tivesse - e vai ter -, um foi levar o debate em directo a Viseu. Pela televisão. Do interior para Portugal. A capital e o seu poder deslocavam-se por umas horas à "província" para a discutir e avaliar com "os locais", na circunstância os beirões. Segui com interesse o Viva a Liberdade, de Miguel Sousa Tavares, há uma semana. E senti, como outros, no fim, alguma frustração. Conhecidas que são as aguerridas posições anti-regionalistas dos protagonistas do programa, fiquei com sérias dúvidas sobre se a intenção teria sido a de um debate esclarecedor, ou mais a de promover uma mera vozearia cruzada e, desejavelmente, inconclusiva; se o propósito seria o de homenagear e servir o interior, ouvindo ao vivo as suas razões, ou só o de o dividir e expor dividido à volta dos bairrismos das "capitais". Algumas contradições e fragilidades dos anti-regionalistas vão ficando, porém, mais a claro. 

Houve quem quisesse assegurar que as regiões administrativas consolidarão o egoísmo intra-regional. Proclamou-se, no jargão conhecido e datado, que "as regiões mais ricas ficarão mais ricas e as regiões mais pobres ficarão mais pobres". De nada serviram as várias declarações em contrário dos regionalistas de serviço ao debate. O preconceito - porque de um puro preconceito se trata - foi glosado e martelado em vários tons, como "slogan" fatal. 

Ninguém é capaz de provar que seja assim. Pelo contrário, a prática autárquica dos últimos anos está recheada de evidências inversas e de um espírito de efectiva solidariedade que se enraizou a esse nível da administração. Mas os mesmos últimos 20 anos em que a regionalização ficou pendente, pendurada na Constituição desde 1976, servem bem a contraprova, no quadro centralista que continuou imperante: as assimetrias agravaram-se. Não embarcarei na demagogia geral. Não estou certo que possa dizer-se, em contraponto, que todas as regiões mais pobres ficaram mais pobres, já que o país, entretanto, progrediu em geral. O que aconteceu é que - no quadro centralizado em que estamos, tão querido aos anti-regionalistas - as desigualdades se agravaram a um nível que poucos ousariam prever há 20 anos. O interior desertificou-se mais ainda do que já estava. As pessoas vão-se embora - "votam com os pés", que é a forma mais efectiva de que dispõem para "votar", quando todo o futuro se mostra exíguo. 

E onde o espírito tão extremosamente "solidário" do discurso anti-regionalista se tornou mais patente foi na forma clássica, simplista e sobranceira como exautoraram a "barganha orçamental" a que recorrerão as regiões autónomas. Onde está, afinal, o ânimo redistributivo e o espírito generoso? Onde mora, afinal, o tal de "egoísmo"? 

O argumentário anti-regionalista revela-se bem prosaico, na súbita fúria municipalista que o acometeu. "V. Exª quer uma região? Pegue lá dez municípios em troca!" "V. Exª. quer cem mil para a região? Tome lá antes um milhão para os seus municípios!" "V. Exª. pensa nuns 'boys' para a região? Tem aqui umas grosas de serviços municipais que vai ser uma fartura!" E, no meio de tudo, vai a promessa milagreira, o elixir da felicidade eterna, o El Dorado do bairrismo: "V. Exª. vai ter a sua própria capital! Só para si e seus conterrâneos. V. Exª. vai ser sede, centro de tudo, com paços, armas, brasão, banda, fanfarra e demais honrarias." 

Aqui, ao meu lado, adivinho vários: Algés; Odivelas; Olivais e Moscavide; ou Beato, Marvila e Chelas, unidos no município da Atlântida, em homenagem à Expo. Ou lá em baixo: São Teotónio, Cereal do Alentejo, por aí fora. Nunca se vira tal coisa. Centralistas dos quatro costados, dos que mais resistiram e sempre desconfiaram de qualquer tipo, modo e grau de descentralização, partiram à desfilada, empunhando o pendão de vilões e seus forais. 

Oxalá os municípios ganhem também alguma coisa com tanta fartura e repentina unanimidade. As reformas consistentes que estão a ser desenvolvidas pelo actual Governo vão, aliás, nesse mesmo sentido de reforço municipal - em plena coerência, de resto, com o projecto de descentralização regional. É que a descentralização regional e a municipal vão de par; não se opõem. 

A verdade de tanto empenho municipalista dos anti-regionalistas é, de facto, outra. Não passa da mais antiga das regras da política, tão antiga quanto a política: dividir para reinar. Pura e simplesmente isso. O curioso, aliás, é que aparentemente nem se dão conta dos irremediáveis reflexos dessas arremetidas na despesa pública que tanto os aflige. 

Diversamente do que esgrimem, não é verdade que a regionalização administrativa redunde num aumento da despesa pública, até porque há formas legais de limitação e controlo, haverá transferências reais e, em boa parte das áreas, não haverá mais do que passar serviços da administração periférica do Estado para a competência das novas autarquias regionais e que reafectar à decisão e gestão destas os recursos humanos, técnicos e financeiros que já hoje estão dedicados a um escopo regional ou distrital. Mas uma coisa é certa: se a estratégia da reacção anti-regionalista é a de fomentar febrilmente todos os bairrismos que encontrem por aí, dar livre curso à explosão criadora de novos municípios e multiplicar a eito autarcas e seus serviços em espaços territoriais cada vez mais atomizados, aí, sim, é que a despesa pública disparará de modo inexorável e, porventura, completamente infecundo. 

Está certo que, já agora, se reavalie também a divisão municipal. Até porque há, também aí, localizados, alguns problemas sérios por resolver. Mas que se coloquem as questões com rigor e seriedade, cada uma no seu plano próprio, e principalmente com coerência. Onde é que está, afinal, o país a ser retalhado? E onde é que mora o despesismo irresponsável? 



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 24.Maio.1997

Comentários

Mensagens populares