A Europa engasgada
Será "gigler" entupido? Serão velas sujas? Será avaria nos cilindros? Ou combustível adulterado? A Europa avança, mas avança aos soluços, como um carro cujo motor engasga.
A Cimeira de Amesterdão foi a melhor evidência desse estado actual da União Europeia, do seu projecto e do seu ânimo. Que se arrasta desde há alguns anos e está sem dúvida associado à falta que tem sido notada dos grandes líderes, dos grandes carismas que marcaram a história europeia do segunda metade do séc. XX.
Não vem, aliás, grande mal que se tenha avançado menos do que alguns desejariam. Antes pelo contrário. Os tempos - e o estado geral da alma europeia - recomendam alguma prudência quanto a "avanços" demasiado voluntaristas, nomeadamente nos "dossiers" mais sensíveis, como o da reforma das instituições europeias, tocando ora no peso relativo dos diferentes países, ora no equilíbrio entre órgãos próprios da União. Mais vale estacar e sobre-estar do que, precipitadamente, gerar choques e reacções que fariam comprometer anos de caminho, psicológico, político e cultural, nas opiniões públicas nacionais. A absoluta proximidade do desígnio da moeda única bem como a grande sensibilidade deste tema e a sua valia estratégica e de teste e motor geral mais do que justificam que as atenções, os cuidados e as preocupações aqui se concentrem sobremaneira.
Não é esse o problema. O problema é o de que as coisas acontecem assim, mas não são ditas assim. Não são ditas assim claramente. O problema é o de que a agenda aparente é sempre mais ampla - e diferente - do que a vontade real; e também do que a vontade possível. O problema é o de que o discurso é diferente dos factos - tanto, antes, na formulação de expectativas ou de pressões cruzadas, como depois, na apresentação dos "êxitos" conseguidos.
A cimeira longamente programada da reforma institucional, ou a cimeira pressionada à pressa "à la Jospin" do "dossier" social e do emprego, acabou por ser sobretudo outra cimeira do euro. E, por isso, curiosamente, os que mais claramente venceram (Helmut Kohl) são os mais calados e silenciosos - para não humilharem os parceiros que nas vésperas mais se agitavam. E aqueles que, efectivamente, menos conseguiram (Jospin e outros), são os mais faladores - cobrindo que tivessem conseguido tão pouco.
Não está mal o que efectivamente se passou. Houve alguns avanços e progressos. Mas esse desconcerto entre o discurso amplo e os factos curtos gera a tal sensação de um carro engasgado. Pode ser que se saiba exactamente por onde está a ir-se e a que ritmo; mas não é isso o que se transmite. O carro engasgado anda, é certo; anda sempre e até pode ser que nunca pare. Mas cria em toda a gente uma tremenda sensação de insegurança - nunca se sabe se vai parar uns quilómetros mais à frente, nem sequer se um rumo comum (qualquer que seja) poderá ser prosseguido.
A Europa precisa de clareza e de vitaminas. E precisa de verdade. Simples, mas efectivamente capital comum. Esta Europa de que se trata é um grande desígnio das gerações do segundo quartel do século e, apesar das suas roupagens económicas, sempre prosseguiu um fundamental desígnio político - a paz. E, por isso, a União. A União num quadro geral de democracia, de liberdade e de mercado; e, claro!, de desenvolvimento e de prosperidade económicas; e, claro também!, num quadro de justiça social. Podemos estar só a falar do euro; mas ainda quando falamos sobretudo ou mesmo apenas do euro, é daquilo tudo que estamos a falar.
A Europa precisa de repor uma agenda efectivamente comum. Uma agenda comum não é estarmos todos a discutir os mesmos temas - sejam 10, 20 ou 50. Sobretudo quando discutidos ao modo de cada um para seu lado. Uma agenda comum é prosseguirmos os mesmos temas, munidos das mesmas ideias fundamentais a seu respeito - mesmo que seja só a respeito de um tema, ou de dois, ou de cinco. Uma agenda comum não é uma diarreia geral de todos os debates, de todos os sonhos, de todas as quimeras. Uma agenda comum é a escolha e o apuramento criteriosos daquilo que efectivamente nos une e identifica a todos do Norte e do Sul, do Ocidente e do Leste, mas que não esbate, nem apaga, nem acaba os eternos debates entre a esquerda e a direita dentro de cada país e também no espaço europeu. Uma agenda comum é a eleição do que tem valia institucional e potência agregadora.
O alargamento a Leste vai pôr problemas novos, que exigem atenta reflexão. E, além do que se discute à superfície, importa ter presente que as opiniões públicas desses países não têm a mesma história e o mesmo balanço dos países que deram a matriz à CEE e à União - antes pelo contrário, até há poucos anos pertenciam a outro "bloco", "inimigo" por sinal. Um certo choque cultural poderá ser inevitável. Não se trata de discriminar; mas justamente de prestar atenção para melhor todos integrar. Nos países a Ocidente, as opiniões públicas estão também inquietas e, não diria descrentes, mas certamente menos crentes - importará seguir bem, por exemplo, os efeitos da eleição do novo líder dos conservadores britânicos, William Hague, um jovem de 36 anos (mais novo ainda que Tony Blair) é o favorito da srª. Thatcher.
Faz, por exemplo, muito sentido continuarmos, em termos clássicos, a falar de tensão entre alargamento e aprofundamento, quando tanto os "alargamentos" como os "aprofundamentos" vêm cada vez mais recheados de excepções e de derrogações nacionais, como ainda agora aconteceu nalguns dos "progressos" de Amesterdão? E o que dizer de novidades proteccionistas, ao completo arrepio de toda a tradição dos tratados, como a aparentemente arrancada em Amesterdão pelo "lobby" das televisões públicas?
Por que é que a mesma lógica proteccionista, subvencionista e estatista não haverá de aplicar-se também às moagens e aos cereais, à energia, às telecomunicações, à economia toda, rebentando com o Mercado Comum de que todos partimos?
Mais vale menos, mas certo. Mais vale devagar, mas seguro.
Refazer uma agenda comum é prioritário. Com a política no centro. Os europeístas convictos poderiam mesmo começar a trabalhar para um momento em que, tendo já todos os países da União efectuado em momentos diferentes referendos nacionais sobre a questão da integração a este ou a outro título, se avançasse para um referendo europeu global. Um pouco ao modo do sinal - agora mais forte, porque mais preciso - do que, aqui há 20 anos, foram as primeiras eleições directas para o Parlamento Europeu.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 22.Junho.1997
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