Todos contra um
Aqui chegou o Benfica. O emblemático "Et pluribus unum" já só parece dizer: "Todos contra um". Manuel Damásio, que pareceu o redentor noutros tempos gravíssimos de outras crises, é agora um homem a abater.
É natural. No futebol, centro de todas as atenções e por isso também foco de todos os vulcões, nunca houve uma época tão má. E a derrota na final da Taça, miragem das últimas esperanças, entornou o que faltava.
O Benfica, clube de campeões, mal habituado aos desaires, atravessa a maior crise de sempre - não já só financeira ou directiva, mas moral e associativa. O Benfica está doentíssimo. Entre isto e o clube popular, animado, combativo, ganhador, a que alguns milhões de sócios e simpatizantes em Portugal e pelo mundo se habituaram a pertencer, a diferença é igual a um abismo. Entre isto e o estatuto de "glória da nação" conquistado sobretudo na década de 60, não há o mais leve traço de semelhança.
Esse Benfica... esse Benfica faz-nos falta. É um traço de identidade que importa repor. É uma fonte de ânimo, de convívio e de alegria que há que restabelecer.
Não estou em posição de saber se "a culpa" será assim toda de Manuel Damásio e da sua direcção. Nestas coisas há sempre alguma injustiça - ou mesmo muito. Mas a verdade é que a capacidade dirigente dos actuais órgãos do Benfica se esgotou por inteiro e é absolutamente incapaz de repor qualquer rumo certo, por melhores planos ou intenções que ainda pudesse ter.
Tudo corre mal. Dos resultados desportivos do nosso descontentamento até ao quadro miserável e de vergonha para que as claques evoluíram, apesar de todos os avisos. Há dias em que ser do Benfica passou a ser uma vergonha. E ser do Benfica sempre foi um orgulho, um brio, uma vaidade.
A Lei de Murphy parece ter vindo para ficar: "Se alguma coisa puder correr mal, correrá mal." E, com ela, vários dos seus corolários ou variantes de sinistro pessimismo e desastre inexorável. "Quando as coisas já não podem ser piores, pioram." "Quando uma tarefa corre mal, qualquer coisa feita para a corrigir só a piorará." "Tudo o que começa bem acaba mal; tudo o que começa mal acaba pior." "Mais tarde ou mais cedo, o pior conjunto possível de circunstâncias acabará por ocorrer."
O Benfica precisa de confiança. E os actuais órgãos sociais, independentemente do benfiquismo dos seus membros e das muitas dedicações individuais - que continuarão, aliás, a ser requeridas e necessárias -, esgotaram a capacidade para repor níveis mínimos.
Entre outros erros que habitualmente se lhe assacam, esta direcção trouxe para o clube a malfadada prática das "chicotadas psicológicas". Hoje, é chegada a sua hora. O mal já não está só na equipa de futebol e no ambiente que aí se viverá. O mal alastrou para toda a massa associativa e no ambiente de desgosto e de cizânia, de descrença e de iras que por aí se vive. Sem rápida recuperação aí, sem catarse e renascimento, nada.
Independentemente do reportório das culpas, nunca percebi por que é que se luta pelo poder nos clubes. Sobretudo no Benfica. Por que motivo é que uns se agarram aos lugares contra todos. E por que é que outros correm para eles contra todos. O estatuto de associação sem fins lucrativos devia inspirar uma outra moral destes debates e destas disputas. O fundamental não é quem manda. O fundamental é a convicção de um rumo, a partilha da camisola e do emblema, uma determinação que se comunica, o clima que se respira, o ânimo geral da associação.
Quando nada disto acontece - seja pelo que for -, há que dar lugar a outros. De preferência aos melhores. E estes são Bagão Félix e aqueles com que tem trabalhado. A crise do Benfica é muito profunda. Tem anos e importa lidar com ela com conhecimento de causa e com cabeça fria. Quaisquer loucuras, cometidas hoje na febre das promessas de êxitos a qualquer preço, seriam desastrosas e poderiam ser fatais. O reequilíbrio financeiro e a gestão profissional continuam a ser exigências prioritárias. A reforma estatutária ainda aí está e as transformações organizativas impostas por lei são de enorme sensibilidade e delicadeza.
O Benfica precisa de algumas coisas simples, mas que exigem lastro. Credibilidade dirigente e estabilidade. Rigor financeiro e planeamento da recuperação. Reposição da mística e de algumas noções básicas do benfiquismo. Não pode continuar-se com a ideia de que uma equipa de futebol é assim como uma estação de comboio, com jogadores permanentemente a entrarem e a saírem; nem pode continuar a passar-se da situação em que o Benfica fazia gala em só ter jogadores nacionais para o extremo em que não venha a ter nenhum; nem pode evoluir-se do Benfica garboso das suas escolas e dos seus jovens para um outro vestido de pura agência de comércio.
Ninguém com os pés na terra quererá mudanças exaltadas só tendo em vista "a desforra" e o campeonato do ano que vem. Seria loucura. E não chega. O que os benfiquistas querem é um Benfica com horizontes largos, um Benfica para a próxima década ou, na linguagem da moda, o Benfica "do século XXI". Os tempos, aliás, fazem apelo a todo um novo tipo de dirigismo desportivo, tão doente se foi tornando o futebol português em geral.
Se há benfiquistas assim, com capacidade dirigente, credibilidade geral, consistência técnica e profissional, inteligência e seriedade, novos programas de acção - chegou a hora em que o clube os chama. Se há benfiquistas assim (e há), com espírito de equipa e condições para a formarem - o Benfica convoca-os. Dirigentes de rigor e de verdade.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 15.Junho.1997
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