Autonomias e dissidências


Diante do insistente alarido da crise Alegre no Grupo Parlamentar do PS fui ver se havia cheias. Não havia. Fui ver se havia fogo. Não havia. Fui ver se alguma cidade, vila e aldeia tinha ruído. Não tinha. Fui ver se havia mortos ou feridos. Nem sinal de um, nem sombra de outros. Fui ver se o escudo caíra estrepitosamente nos mercados cambiais, arruinando a economia nacional. Não caíra. 

As coisas têm a importância que têm. 

Mais grave, muitíssimo mais grave é a crise da TAP. E, para essa sim, não parece a maioria ver qualquer saída, salvo um inconstitucionalíssimo "lock-out" total - acabar com a empresa. Mas adiante... 

Em qualquer caso, sendo Manuel Alegre uma referência moral do PS a crise é também - ela própria - referencial e emblemática. As questões que suscita são várias. Desde logo, a da autonomia do deputado, num mal-estar que vinha de trás e que se entornou a respeito de Vizela. 

Muitas das indignações disciplinares que por aí se ouvem não podem entender-se, independentemente dos danos reais e muito profundos que estes episódios sucessivos estão a causar ao PS, à maioria e a Guterres. Mas a verdade é que a própria reforma do sistema político que está a fazer-se nesta revisão constitucional se guia precisamente pela dignidade e pela autonomia do deputado. Todos devemos ter por claro que, no futuro, em todos os partidos potencialmente, este tipo de casos sucederá com muito mais frequência. No Congresso americano ou nos Comuns britânicos - emblemas da vida democrática estabelecida e estabilizada -, sabe-se a frequência com que acontecem. "And so what?" O juízo geral feito, independentemente do debate de cada caso concreto, é o de que esse facto, longe de danificar o sistema democrático, o torna mais vivo, mais genuíno, mais sólido. O deputado deixa de ser simples cabeça em manada ou funcionário das direcções partidárias, para ser e se afirmar plenamente senhor da própria representação. São deputados com cara e não apenas com cartão. 

Certo que haverá sempre consequências das atitudes. Mas, essas, serão simplesmente políticas - como tudo na política. De modo algum disciplinares - como se num infantário ou num quartel. 

Era, aliás, interessante e valioso, neste amadurecimento geral dos nossos hábitos democráticos, que os sectores "alegristas" compreendessem isso mesmo quando os papéis se invertem e são outras as "minorias". Não é o que tem sucedido, como bem se sabe, contra os três independentes do MHD ou outros "dissidentes" das iniciativas da JS. Aí, o "alegrismo" empunha o facho da verdade única e veste-se sempre da guilhotina na melhor tradição da Revolução Francesa. Mas lá chegaremos... 

A outra questão que atravessa a disputa é, de facto, a da fidelidade. A "minoria" não se reclama tanto da "autonomia", mas sobretudo da "fidelidade". Esta "minoria" - de alguns temas sensíveis da revisão constitucional ao episódio de Vizela, passando pelas "leis morais" - o que verdadeiramente pensa é que a maioria, a totalidade do partido, devia obedecer aos seus ditames. Por isso, a ameaça e as sugestões de rompimento ou dissidência total: a maioria é "impura"; será preciso bater-lhe com a porta. A isto, por sinal, chamam de "tolerância". E de "arrogantes" todos os que não concordam... 

Fidelidade por fidelidade, aliás, convinha saber a quê. Tomemos, por exemplo, o velhíssimo e muito aceso drama da introdução do voto dos emigrantes também nas eleições presidenciais. Diz um texto: "Definição de uma solução genuinamente democrática, equitativa e praticável, que dignifique a participação da comunidade portuguesa no exterior na eleição presidencial." Onde é que isto pode ler-se? Na proposta do PSD? Não. Exactamente no "Programa eleitoral de Governo do PS e da Nova Maioria", apresentado e vencedor nas eleições legislativas de 1995. Diz outro texto: "Terceiro princípio: abertura à participação de cidadãos portugueses residentes no estrangeiro na eleição presidencial, em condições que assegurem a genuinidade e segurança do sufrágio." Onde é que isto está? Naquelas obscuríssimas minutas negociadas entre Lacão e Marques Mendes? Nada disso. Está no Projecto nº. 3/VII, o projecto de revisão constitucional do PS "só PS". Em que ficamos? 

Uma coisa é o direito de Manuel Alegre ser como é - que é um direito dele e de qualquer outro. Outra questão é o dano real que as sucessivas arremetidas dos "autênticos" vêm causando ao PS e ao seu líder. Por sinal, desviando as atenções de outras "autonomias" e fracturas no seu principal adversário: o PSD. 

Para este domingo, na festa madeirense, Alberto João Jardim fez anunciar festival. E, como aperitivo, ao seu hábito, já foi apaladando o terreno com furiosas imprecações contra o "Estado unitário" e incríveis sugestões do seu lugar-tenente para a adopção da fórmula "um país, dois sistemas". Vai vir de certeza pior ainda. Mas Marcelo Rebelo de Sousa pode dormir descansado ou ir a banhos, sem necessidade de quaisquer explicações ou da menor desautorização - os "autênticos" do PS vão trabalhando a seu favor. 

A "democracia à jardineira", porém, é um problema demasiado sério e não simples extravagância carnavalesca. Não se trata apenas de antecipar desde já o líder madeirense mascarado de Derto Xoao Jarding no próximo Carnaval do Funchal. Trata-se do quadro institucional em que o nosso país vai evoluindo. E era tempo de os anti-regionalistas, nomeadamente os do PSD, se darem ao cuidado de verificar que não é a regionalização administrativa do Continente que causará o menor dano ou embaraço à unidade nacional. Pelo contrário, o que tem acumulado rombos sucessivos no equilíbrio institucional do país é a regionalização incompleta e, pela pressão do PSD, esta crescente redução, no imaginário das pessoas e nos textos das leis, dos órgãos de soberania a meros órgãos da "Região Autónoma do Continente". Até quando e até onde irá o forrobodó?



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 27.Julho.1997

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