Milhões


Indústria por indústria, não sei se a indústria do desporto merecerá mais apoios públicos que outras actividades produtivas, social e economicamente mais relevantes para o desen­volvimento nacional e regional. Além de que têm que pagar os mesmos impostos que to­das as outras. 

Há anos, colaborando no Ministério da Educação no mandato de Roberto Carneiro, em tempos de preparação da Lei de Bases do Sistema Desportivo, corria um debate lateral. Era o de saber se a tutela do Desporto deveria pertencer à área da Educação, ou não. Por nós, achávamos que sim. Havia muitos que pensassem que não. Por mim, fazia um vaticí­nio: quando o debate terminasse, ir-se-ia chegar à conclusão de que o sítio certo era mesmo o desporto ser integrado no Ministério do Comércio. 

Não passaram muitos anos. Quando agora, nesta semana, os temas mais palpitantes da "política desportiva" têm a ver com o Ministério das Finanças - o eterno passivo fiscal dos clubes - e com o Ministério da Economia - o negócio da Autodril -, está tudo di­to. Os outros temas da época são, aliás, parentes: as transferências milionárias dos clubes, a resistência à transformação em sociedades desportivas, os ecos ainda do espalhanço in­sular de Alberto João Jardim na fusão dos clubes madeirenses. O sítio certo para este des­porto é definitivamente o do Comércio. 

O senhor primeiro-ministro diz que não entende. Cito-o de quinta-feira passada: "Não compreendo como é que fazem contratos tão volumosos para contratar jogadores e não cumprem as suas obrigações [fiscais] para com a sociedade." Faz o senhor primeiro-mi­nistro muito bem em não entender. O país também não. E menos perceberá o país que o senhor primeiro-ministro - ele que "todo lo manda" - não entenda e, pior do que isso, que, não entendendo, amplie ou deixe prosseguir o festim. 

Agora, são os 20 milhões para desencravar o "imbróglio" da Fórmula 1 e descalçar a bota do ministro Mateus. Isto, para já. A estes milhões se seguirão muitos outros para as obras e as exigentes benfeitorias do circo automóvel, ao ritmo da chantagem anual da federação internacional. 

Haverá porventura muita falta de informação nas críticas ao acordo feito com o grupo Grão-Pará. À boleia de Ferraris, Williams e MacLarens, aquelas cifras milionárias cobrem muitas outras questões, como a crise de empreendimentos turísticos, contenciosos fiscais, interesses imobiliários e questões antigas que, com verdade ou sem ela, o grupo arrasta ainda desde os idos de 75. O pacote é confuso. E, das duas, uma: ou nas outras questões o grupo Grão-Pará tem razão, ou não tem. Se tem, deveria ser-lhe dada, de pre­ferência fora de época e independentemente da bulha automobilística. Se não tem, nunca deveria ser-lhe reconhecida, por mais "importante" que se ache o Autódromo do Estoril e o seu Grande Prémio. Assim cheira a esturro. Tresanda a grosseiro oportunismo que todo este pacote fosse agitado e chantageado uma vez mais em cima da mesa por ocasião do "rodeo" anual do festival automóvel. 

A ideia que fica é que nenhuma dessas questões teria, nem terá, mérito próprio para ser resolvida autonomamente, ponto por ponto, nas sedes próprias. Que, não fosse o jeitoso embrulho da Fórmula 1, nenhuma delas seria considerada, menos ainda atendida. Que só a chantagem à volta do autódromo permitiu tal girândola de acordos. E passará a burla política vestir de acordo "normal" algo que só foi extorquido para fazer o frete aos man­da-chuva do volante. Ainda por cima guardando do lado de lá a "arma do crime": a gazua para o tesouro público em que se tornou o autódromo. Por essas e por outras é que, aqui há anos, acabou tudo na requisição administrativa do autódromo. Pimba! 

Este "desporto" não tem nada a ver com o outro que ainda nos anda no coração. Este "desporto" carrossel de milhões não tem nada a ver com aquele que é factor de educação e cultura, de saúde e de progresso social. Este "desporto" é puro espectáculo e indústria comum. 

Não vem disso nenhum mal ao mundo. É o progresso - dir-se-á. Mas esse mesmo "progresso" exige, em paralelo e concordância, o urgente revisionismo das ideias feitas sobre o desporto, como justificação para todo o tipo de facilidades, benefícios e favores. Vem muito mal ao país e ao bolso do contribuinte que continuem a extorquir-nos verbas astro­nómicas ou a desviá-las de outros fins socialmente mais úteis para custear uma política desportiva de encher mais o olho do que o pulmão. 

Indústria por indústria, não sei se a indústria do desporto merecerá mais apoios públicos que outras actividades produtivas, social e economicamente mais relevantes para o desenvolvimento nacional e regional. Além de que têm que pagar os mesmos impostos que to­das as outras. 

E o que a indústria ou o comércio do desporto não podem continuar é a absorver recursos públicos crescentes à custa de frases como "o desporto é saúde", "o desporto é factor de formação da juventude", "o desporto é instrumento de prevenção da toxicodependência" - tudo ideias antigas que ainda há o desplante de repetir sempre que se trata de organizar o peditório. 

Eu também gosto de ver "a bola". Mas o que é interessa à formação dos meus filhos ou à minha própria saúde equipas de futebol construídas à razão de milhões? Eu também deito o olho para as corridas de Fórmula 1. Mas qual é o efeito formativo de ver 20 "atletas" sentados a acelerar pelos 200 km/h durante cerca de duas horas em cada ano? E o absurdo atinge o seu total, em matéria da tal "prevenção da toxicodependência", quando, nesse novo mundo do novo desporto, aqui ou ali se ouvem histórias de droga em claques clu­bistas ou se sabe como acabam à noite alguns grupos de jovens após as romarias anuais ao autódromo. 

Esses mundos são diferentes. E há que separá-los de vez. À indústria e ao comércio o que é de indústria e comércio. Ao desporto e à educação o que é efectivamente desporto de valência formativa. 

Por falarmos em milhões, cadê o desporto escolar? Pelas minhas contas, um pavilhão desportivo escolar deverá custar hoje cerca de 100.000 contos. Vinte milhões daria, num só ano, para construir 200, equipando outras tantas escolas e beneficiando as respectivas comunidades. Há 20 milhões de contos para isso? Para a tal "escola de virtudes" propria­mente dita, de praticantes e não para mirones? Há 20 milhões por ano para acabar de vez com o ainda extraordinário défice de equipamento desportivo escolar? Porque não? É tudo uma questão de prioridades.


José Ribeiro e Castro

Jurista

PÚBLICO, 13.Julho.1997

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