Os meninos à volta da fogueira
Não fossem as baboseiras legislativas freneticamente debitadas pela rapaziada da JS, com a benção muito "rive gauche" da Real Mesa da Doutrina Oficial da Esquerda, António Guterres poderia encarar todas as tempestades, crises e eleições com absoluta confiança. Assim... nunca se saberá se, no fim de tudo, acabará por perder.
Surpreende sempre, ao nível de legisladores - que é, convém lembrá-lo, o papel principal dos deputados -, uma confusão tão grosseira de políticas sociais ou quadros institucionais com gerência da sexualidade, como a que há duas semanas varreu o Parlamento. Os rapazes guardaram-se para a próxima. Não desistem. E anunciam novas cargas, ao modo de iluministas do Bairro Alto revendo por decreto soberano os costumes pátrios.
Senhores da cobiçada tribuna "jota", que fornece o estatuto profissional de jovens e convoca a ternura nostálgica de avós, não representam sequer uma geração, e menos a sociedade. Mas a juvenil oficialidade estatutária estimula as ousadias e o compadre apadrinhamento dos anciãos brinda-lhes caprichos ou provocações. Olhando à crónica da legislatura que corre, os objectivos sociais da tertúlia resumem-se a três linhas: liberalizar o aborto; liberalizar a droga; rebentar com a família. O programa mínimo de qualquer grupúsculo radicalóide, tipo PSR (m-1) (R). Convenceram-se de que isso é que é "de esquerda" e andam a endoutriná-los de que lhes pertence o mandato da Reforma Moral e de que o povo e a razão os terão investido do "papel histórico" de interpretarem e protagonizarem a Reforma da Civilização. Nem mais, nem menos. Ensandeceram!
Podem Governo e Guterres acumular êxitos sociais efectivos, como na recente institucionalização do rendimento mínimo garantido, uma das reformas de sentido e alcance mais profundo nas últimas décadas. Não interessa. "A esquerda autêntica" não é isso - "a esquerda" propriamente "de esquerda" ocupa-se do charro. Podem o Governo e Guterres pilotar com cuidado e determinação as reformas da descentralização do Estado e da administração pública, que são das mais estratégicas e sensíveis para o futuro dos portugueses e, por isso mesmo, das mais críticas e difíceis para uma maioria minoritária. Não importa. "A esquerda genuína" tão-pouco é isso - "a esquerda" verdadeiramente "de esquerda" cuida do "make love". Extraordinário!
São os meninos à volta da fogueira. Na fogueira, ardem Guterres e maioria PS. Em lume brando. Bem passado.
Os tempos vão de feição para as coligações negativas. Nesta semana, foi o turno de PP, PSD e PCP darem as mãos para frustrar a reforma das finanças locais proposta pelo Governo. O tema já vinha de trás e mantém-se a crepitar, podendo levar, no rescaldo de várias refregas, a uma crise política e a eleições antecipadas.
Os projectos em confronto induzem, aliás, em erro quanto às intenções e convicções reais. A proposta do Governo, que foi chumbada, era mais moderada, mas é a de sentido mais descentralizador - pela simples razão de que iria cumprir-se: as autarquias captariam já um aumento imediato de cerca de 20% das suas receitas (um dos níveis mais elevados de crescimento anual) e tudo se enquadraria num calendário de progressão realista, comportando espaço para a criação, entretanto, do novo patamar regional.
Quanto às propostas das oposições, aparentemente mais generosas e fundamentalistas, envolvendo uma variação brusca da ordem dos 150%, acabam por ser as realmente centralistas - pelo efeito directo do seu irrealismo imediatista.
Qualquer defensor da descentralização municipal e regional, deseja e apoia graus mais acentuados de transferência e de devolução de poderes e de recursos para instâncias de planeamento e decisão mais próximas do cidadão. Mas a gestão da despesa pública é matéria de tão grande sensibilidade que é indispensável caminhar com cuidado e gradualismo. Quem quiser andar depressíssima e forçar a transformação brusca, é provavelmente porque quer deitar tudo a perder. Ao PSD, por exemplo, cabe o descrédito de, abundando agora na generosidade parlamentar, quase nada ter feito aqui nos dez anos em que governou à vontade - a viagem até ao nível de receitas municipais que diz desejar para 1998 teria sido mais suave e bem possível, se, desde 1985, aos poucos em cada ano, tivesse conduzido o país, realisticamente, para essa meta. E, no que toca ao conjunto PP/PSD, fica por esclarecer o sentido e a sinceridade das furiosas críticas de "despesismo irresponsável" com que sistematicamente arremetem contra qualquer aceno de regionalização. O mais provável é sua atitude seja de pura reserva mental: que qualquer reforma descentralizadora, municipal ou regional, não passe do tinteiro e dos discursos e, dê por onde der, seja feita rebentar pelo caminho. A posição do PCP é que não se entende de todo. Coube-lhes, na história, o papel dos "idiotas úteis": primeiro, o saldo imediato é o de que nada se avançou; depois, se tudo vier a acabar a prazo em crise política geral, é mais que certo que nada se fará. Com o que terão ganho, contra os municípios e as regiões, os centralizadores de todos os quadrantes. Parabéns!
Mas, para Guterres e o PS, nem é esta coligação negativa que constitui o maior risco e dano. O pior é esta união de facto incluir a brigada alegre da JS e seus patronos. Não por alguma obscura conspiração que pudesse detectar-se entre os 11 que faltaram à votação desta semana e a devotada tertúlia da Reforma Civilizacional. Mas porque, quando formos a votos a sério, os eleitores reais lembrar-se-ão dos meninos à volta da fogueira de Guterres - ou serão lembrados. Ninguém fará campanhas furiosas pela Ordem e pela Fé. Ninguém parece estar para isso. Bastam os cochichos à esquina, os sussurros de corredor, os pasmos escandalizados, as conversas de café, as anedotas de lavabos e balneários.
Corrosivo e sem dono. Tem pinta, o Pinto.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 6.Julho.1997
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