Perplexidades e reservas
Em arrastados anos, por receio, por pudor, por mau jeito às "perplexidades e reservas", foram sendo bloqueados, empurrados para a obscura prescrição, a verdade e o processo. Agora, nem uma história. Nem o filme do processo nos querem deixar ver. As nossas consciências seriam demasiado sensíveis. É preciso poupar-nos.
A acta do júri que acaba de excluir dos apoios financeiros do IPACA o projecto do filme "Camarate", de Luís Filipe Rocha e da MGN Filmes, é um documento verdadeiramente extraordinário e revelador. Revelador de prepotência e abuso de poder. Extraordinário pelo descaramento e pela desfaçatez.
Lá vem escrito, de modo cândido, mas não inocente, o fundamento da exclusão: o projecto pode "suscitar reservas e perplexidades". Por outras palavras: censura! E.P.C., sigla poderosa dos meios do oficialismo estético, assumiu claramente um novo significado: "exercício prático de censura". Lá vem, escarrapachada, a tortuosa manipulação dos critérios de pontuação do concurso, por forma a, conseguindo o absoluto prodígio de ditar "sem interesse"(?!) o tema e o projecto (?!!!) - se atingir o objectivo pré-determinado de deixar cineasta e produtor abaixo da fasquia. Verdadeiros artistas da tesoura, excelentíssimos costureiros, mãos de fada.
Perplexidades e reservas! - mágica fórmula, desvelada preocupação, senha extraordinária. "Perplexidades e reservas" é bem o símbolo sumário de todo o assunto de Camarate. O universal carimbo multiusos.
As investigações iniciais cedo se afogaram no atoleiro do inexplicável acidente - por medo de "perplexidades e reservas". Moveram-se obstáculos sucessivos contra a busca, o conhecimento e o estabelecimento da verdade - pelo decoro das "perplexidades e reservas". Geraram-se atritos do sistema judiciário contra os inquéritos parlamentares - pelo poder das "perplexidades e reservas". Distorceram-se ou abafaram-se testemunhos cruciais, como o Parlamento denunciou - pelo pavor de "perplexidades e reservas".
Desvalorizaram-se ou confundiram-se perícias determinantes - pela aflição de "perplexidades e reservas". Multiplicaram-se peripécias processuais - pelo incómodo das "perplexidades e reservas".
A lista poderia ser interminável. No início de tudo, poderão estar também outras "perplexidades e reservas " - aquelas que "dossiers" nas mãos de Sá Carneiro ou de Amaro de Costa, de ambos ou só de um, causassem a quem tivesse razão para se incomodar e a quem tivesse também o poder secreto, eficaz, brutal para se incomodar daquela forma. E, no fim de tudo, porque as histórias nunca ficam inteiras enquanto não estão completas, faltava também um acto de censura, uma tesoura, uma rolha, um lápis azul encartado. Aí está! Luís Filipe Rocha e Tino Navarro tinham que saber com quem e onde se metiam. Aconteceu a outros; a eles também.
Em arrastados anos, por receio, por pudor, por mau jeito às "perplexidades e reservas", foram sendo bloqueados, empurrados para a obscura prescrição, a verdade e o processo. Agora, nem uma história. Nem o filme do processo nos querem deixar ver. As nossas consciências seriam demasiado sensíveis. É preciso poupar-nos.
A decisão deste júri, com o aval deste ministro, significa também um triste país e simboliza uma tristíssima cultura. O país é o mesmo país celebrado dos "brandos costumes" - que não pode ser desinquietado da sua mansidão, nem mancha de irrequietude vir afligir crenças suaves, bucólicas e angelistas. E a cultura é uma cultura de bibe, menina de tranças, simpática e risonha, pura e virginal, com as primeiras letras e poucas contas, entretida a nunca saber exactamente, mas só a pensar no mais ou menos, de que as duras realidades devem ser omitidas e onde os enredos hão-de ser balofos, moluscos, invertebrados, muito assim-assim. Um território onde apenas se consentem dois tipos de divagações adultas: a alarve vulgaridade pimba que toda a gente canta; e as sublimes chatezas para intelectuais barbados, que ninguém vê, nem lê, nem conta.
O cinema de Luís Filipe Rocha não é assim. A produção de Tino Navarro também não. E, por isso, ao escolherem o tema maldito de "Camarate", o "perigo" era enorme. O destino estava traçado: "perplexidades e reservas"! Nem pensar. É demais. Não pode ser. Corta! Para a interpretação do lápis azul, não se podia ter escolhido melhor, senão aquele que se investiu no suserano lugar de pontífice cultural e ideólogo estético da Pátria. O mesmo que, diáfano e esvoaçante, mais guru que propriamente musa, atravessou marcelismo, gonçalvismo, comunismo revolucionário, pintasilguismo, eanismo, soarismo pontual e intermitente, até se instalar no cavaquismo parisiense e antes de não só encarrilar, mas, mais acertadamente ainda, "encarrilhar". E o mais que se verá... - pois a vida continua. Quem é que presidia ao júri que censurou "Camarate", quem era? Eduardo Prado Coelho. Nem mais. Por onde se verificam e confirmam os dois mais notórios atributos da rolha, segundo as leis da Física: a rolha que flutua; a rolha que tapa e cala.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 20.Julho.1997
Comentários
Enviar um comentário