A fraude

No seu "Manual de Direito Constitucional", o prof. Jorge Miranda informa os seus alunos sobre as fontes da Constituição quanto às regiões administrativas. Trata-se exactamente dos dois projectos de Constituição apresentados pelos então CDS e PPD, respectivamente nos seus artigos 10.º, nº 1, e 7.º, nº 2. É favor conferir. 

É um livro científico e universitário. Coisa séria. Não é uma tirada panfletária das que têm reaparecido a propósito da regionalização e que irão multiplicar-se. 

É um dado histórico de absoluto rigor. E este dado ajuda a compreender como é verdadeiramente gigantesca a fraude que as direcções nacionais do PP e do PSD andam a promover, traindo e desertando da história que é a sua origem e propalando - pior! - que "essa coisa" da regionalização não passa de um "obscuro acordo PS-PCP", quando não de subversiva "manobra comunista" em atentado contra a unidade da pátria. 

A verdade histórica é que, quando se recorda com escândalo o facto de este ser um trecho da Constituição por cumprir desde há mais de 20 anos, não se está a invocar nada que fosse fruto da febre gonçalvista da época, em registo cripta-comunista ou aparentado. O capítulo constitucional das regiões administrativas não resultou sequer dos projectos apresentados pelo PS ou pelo PCP à Assembleia Constituinte. Antes decorreu dos projectos do PPD e do CDS. Nem mais, nem menos. E esta, hein!? 

Um perigoso cripta-comunista retalhador da pátria era, como é sabido, o dr. Francisco Sá Carneiro. Já a linha dura do antigo regime assim pensava, denunciando os antipatrióticos intentos dos deputados da "ala liberal". 

De facto, em 1977, Sá Carneiro, fundador do PPD-PSD, escreveu: "Para nós, sociais­-democratas portugueses, o poder local é a base da segurança de toda a verdadeira democracia: as municipalidades, as regiões, são fundamentais como centros de decisões locais e não podem ser absorvidas por um Estado centralizado, o qual se poderá tornar despótico, mesmo nos termos democráticos." E mais adiante: "É indispensável que se faça também progressos no campo da concertação. Da concertação entre o todo nacional e as regiões. (...) Não haverá verdadeira política económica nem uma autêntica concertação nacional enquanto se não derem passos significativos para a institucionalização das regiões e para a existência de um autêntico poder local." 

A informação consta de um precioso livrinho de cunho doutrinário editado pelo PSD em 1990 e reeditado em 1996, intitulado "O Ideário Político de Francisco Sá Carneiro (antologia breve no X aniversário da sua morte)". E está inscrita sob os seguintes verbetes, que dariam um programa político: "O poder local e regional, base da democracia"; "Concertação entre o interesse nacional e os interesses regionais e locais". Na edição de 1990, Cavaco Silva garantia no prefácio desta resenha doutrinária: "Reavivar Francisco Sá Carneiro na memória dos portugueses e dar a conhecer o seu pensamento às gerações mais novas é contribuir para o robustecimento do Estado de Direito, para a materialização do progresso nacional (...). Recordar Francisco Sá Carneiro ajuda a mobilizar as nossas melhores energias para a edificação do Portugal moderno de que Francisco Sá Carneiro se orgulharia." E, na reedição de 1996, Marcelo Rebelo de Sousa convocava o papel do PPD-PSD como "motor da Reforma de Portugal Democrático", ilustrando que "nunca é demais evocar Francisco Sá Carneiro e a lição do seu testemunho de vida de pensamento". 

Quanto a Marcelo Rebelo de Sousa, já se sabe como é distraído. E, quanto a Cavaco Silva, está visto. No fundo, não passava de outro grande comunista. Nunca nos enganou. Consta mesmo que tinha Lenine à cabeceira e tratava Marx por tio. E se, entretanto, após 1991, Cavaco Silva parece ter mudado de posição, está tudo explicado: foi a "perestroika". 

A última encenação da grosseiríssima mistificação que as lideranças do PP e do PSD andam a montar e a desenvolver à volta do tema, em nome "da direita" ou por causa dela, foi o drama de Celorico de Basto que abriu e marcou toda a semana. 

A nota mais tocante é a "tragédia do mapa", com que procura enganar-se os incautos e apenas dividir, para derrotar sempre, os defensores da regionalização. Omite-se por inteiro o contributo que para a definição do mapa resultou directamente do vasto processo de consultas às assembleias municipais. E - hábitos antigos que nunca se esquecem... - foi-se mesmo ao extremo de inspirar uma tosca manobra de contra-informação para comprometer o Presidente da República. 

O drama consiste em insinuar que, se o mapa fosse o das "cinco regiões", coincidente com o das actuais comissões de coordenação regional (CCR), então tudo bem. 

Já agora, independentemente das posições de cada um a este respeito, convém completar a ilustração histórica deste tema. No texto original da Constituição de 1976, era assim que se impunha: "A área das regiões deverá corresponder às regiões-plano." Era essa a concepção dominante entre os técnicos de planeamento e administração do território já desde o Estado Novo ou do Secretariado Técnico do "marcelismo". E, ainda hoje, sem menos respeito, essa corrente ecoa de forma mais viva entre quadros tradicionais das CCR, que são as tributárias directas das antigas regiões-plano. 

Deixou de ser assim na revisão constitucional de 1982. Dir-se-á: cá está! Foi obra de comunistas ou da aliança PS-PCP. Nada disso. Quem propôs a eliminação desse figurino obrigatório e libertou a decisão democrática sobre a matéria foi a AD. A Aliança Democrática propunha pura e simplesmente a eliminação de qualquer referência às "regiões-plano" e o seu projecto de revisão constitucional sublinhava logo no preâmbulo: "Propõe-se que(...) as respectivas áreas [das regiões administrativas] não tenham de coincidir necessariamente com as das 'regiões-plano"'. Acabaria por ficar ainda, em 1982, uma fórmula de compromisso, estando tudo documentado num livro de Diogo Freiras do Amaral (outro conhecido comunista de alto coturno), intitulado "A Revisão Constitucional de 1982". E o desiderato da AD - libertando de vez a questão do mapa - só se concretizou na revisão constitucional de 1989, sempre pelo contributo activo do CDS e do PSD. 

Que Manuel Monteiro, que segue a linha protestatória que lhe chega e nunca primou pelo rigor, ignore tudo isto é como o outro. Agora que Marcelo Rebelo de Sousa, que, além do mais, é professor de Direito Público, se preste, ao arrepio do seu próprio discurso e compromisso de eleição como líder do PSD, às tristíssimas tiradas do seu arraial minhoto, dançando a chula - uma p'rá frente, outra p'ra trás, vira e roda - sob a batuta do PP, é realmente lastimável. Assombroso! Ou será assombrado? 


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 31.Agosto.1997

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