Baile de máscaras
A lei lá consta em "Diário da República", dormente desde há seis anos. Essa lei resultou de proposta do próprio Governo presidido por Cavaco Silva e mereceria o acolhimento unânime da Assembleia da República, com o entusiasmo da bancada laranja, na época em que, no "rumo certo", o "homem do leme" conquistou a última maioria absoluta PSD.
O PSD de Beja está zangado. Com os socialistas, por terem deixado cair a consagração autónoma do Baixo Alentejo.
Ou anda tudo louco ou perdeu-se por completo a vergonha. A história é conhecida. O PCP insistia num só Alentejo. O PS persistia em duas regiões alentejanas, o Alto e o Baixo. Feita a consulta às Assembleias Municipais, pronunciaram-se maioritariamente por um só Alentejo. Os socialistas, sobretudo os alentejanos, mantiveram a pressão em favor do Baixo Alentejo. O braço-de-ferro foi renhido até ao fim. No limite, condenados a entenderem-se com a bancada do PCP para que a lei pudesse passar, face à oposição global do PSD e PP, os socialistas cederam e a lei acabou por consagrar um só Alentejo. Salta a furiosa indignação laranja, ouvindo-se de Beja: traição! Os socialistas do Baixo Alentejo - condenam - não têm "capacidade para influenciar a sua estrutura nacional". E os órgãos de informação, acríticamente, veiculam o desplante: "A criação de duas regiões no Alentejo é a solução defendida pelos sociais-democratas."
Extraordinário! Alguém já conseguiu perceber um traço que fosse do pensamento social democrata na regionalização? Por onde andou o PSD de Beja? Onde esteve o PSD de Beja, com o seu partido a adiar e a sabotar a regionalização, ano após ano? E onde está o PSD de Beja quando, por piruetas, cambalhotas e manobras esquivas, o seu partido tudo tem feito, a nível nacional, para boicotar qualquer regionalização e se prepara (tudo o indica) para se lhe opor no referendo?
Compreendo o sentimento de frustração no Baixo Alentejo. Também eu creio que era melhor de outra forma. Mas indo ao essencial: primeiro, a questão não acabou aqui; segundo, não há que desistir e, se as populações assim o quiserem, a lei poderá um dia ser mudada; terceiro, importa sobretudo avançar - mais vale um Alentejo a nenhum.
A irritação bejense do PSD está claramente mal dirigida. Deve visar a direcção nacional do seu partido e a bancada parlamentar laranja, senão mesmo a sua própria deputada, que acumula a condição de porta-voz da Comissão Política Nacional. A verdade elementar é que, se o PSD estivesse disponível para votar a lei que o Parlamento aprovou esta semana, já teríamos Alto e Baixo Alentejo. De resto, aos poucos, vai-se sabendo que a última hipocrisia oficial planeada pelas bandas sociais-democratas, para tentar unir Deus e o Diabo, é que o PSD irá pronunciar-se em definitivo pelo não, sob o pretexto de que estas regiões não coincidem com as áreas de competência das actuais comissões de coordenação das regiões. O que diz a isto o PSD de Beja? Já se deu conta de que isso significaria exactamente um só Alentejo a partir de Évora? O que quer e o que pensa o PSD?
O baile de máscaras é, aliás, mais amplo. Cito três excertos da Lei nº 56/91, de 13 de Agosto. A lei já devia estar em pleno - se o não está, é por responsabilidade do PSD. E os excertos dizem respeito a matérias que os mais distraídos - ou com maior má-fé - costumam invocar como não consideradas, nem resolvidas. Vai uma: "A região administrativa é uma pessoa colectiva territorial, dotada de autonomia administrativa e financeira e de órgãos representativos, que visa a prossecução de interesses próprios das populações respectivas, como factor da coesão nacional." Vão duas: "A autonomia administrativa e financeira das regiões administrativas funda-se no princípio da subsidiariedade das funções destas em relação ao Estado e aos municípios e na organização unitária do Estado (princípio da subsidiariedade)." E vão três: "A repartição de atribuições entre a administração central e as regiões administrativas deve assegurar a intervenção destas na realização de interesses públicos administrativos que revistam natureza predominantemente regional (princípio da descentralização administrativa)."
A lei lá consta em "Diário da República", dormente desde há seis anos, com promulgação por Mário Soares em 26 de Julho e referenda de Cavaco Silva em 31 de Julho. De 1991. Cito-os expressamente porque ambos são dados agora, sobretudo o segundo, como "special guest stars" das frondas anti-regionais. Essa lei resultou, aliás, de proposta do próprio Governo presidido por Cavaco Silva e mereceria o acolhimento unânime da Assembleia da República, com o entusiasmo da bancada laranja, na época em que, no "rumo certo", o "homem do leme" conquistou a última maioria absoluta PSD.
Evocá-lo é particularmente inspirador. Até porque - já o sabemos - Cavaco Silva nunca se engana e raramente tem dúvidas. Estamos no rumo certo.
A mascarada maior é a dos ditos "municipalistas": municipalistas explosivos, frenéticos e de ocasião, de linha PP. A verdade é que - todos o sabem - regionalização e municipalismo são a mesma causa: descentralização administrativa e desenvolvimento.
Mas, à falta de melhor, esses "municipalistas" tardios, incapazes de sustentar os seus pontos de vista, lançam-se na demagogia infrene dos "novos municípios". Há casos e casos. A futura criação do município de Vizela, tal como o da Amadora há uns anos atrás, não trará mal, antes se justificará face à evolução da realidade local. Mas a cavalgada pela pulverização do tecido municipal não serve para mais do que debilitar os municípios, aumentar - ela sim - o despesismo completamente irresponsável, desperdiçar e desorganizar recursos e, afinal, tecer a mesma teia centralista dos seus arautos anti regionais: dividir para reinar.
Paulo Portas, que anteontem retomava no "Independente" o papel de teórico do "monteirismo", assinala-o bem. Curiosamente, distraído como sempre nesta temática regional. Apenas quatro pontos. Primeiro: não é verdade que a Assembleia da República tivesse agora votado "à pressa" - antes durou meses e meses a detida auscultação das assembleias municipais e a análise e tratamento da consulta local na Comissão. Segundo: não é verdade que a Assembleia da República decidisse "furtivamente", aproveitando-se de "um país na praia" - este calendário foi discutido e rediscutido, combinado e recombinado, ao longo de vários meses, com abundante publicidade e as querelas do estilo. Toda a gente sabia que era agora. Terceiro: no tocante à questão do "retalho", como é que o continente está mais "retalhado"? Em 18 distritos, como querem? Ou nas oito regiões? E quarto: diversamente da "boutade" habitual, não é verdade que não haja "estudo de custos", nem "projecção de funções" - basta, a esse respeito, remeter Paulo Portas para a leitura atenta de uma desenvolvida notícia que o seu "Independente" publicou, há três semanas apenas, sobre os trabalhos e conclusões da respectiva Comissão especializada e o seu coordenador Eduardo Cabrita. Além disso, é difícil encontrar-se matéria tão detidamente estudada em Portugal - desde o Livro Branco da Regionalização, no Governo Sá Carneiro, em 1980, passando pelo debate público de 1982, em execução da Resolução Freitas do Amaral, e pelos extensos trabalhos preparatórios da citada lei de Cavaco Silva, em 1991.
Como é possível debater-se assim?
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 3.Agosto.1997
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