Bandeirada


O cartaz que o CDS faria, se fosse ainda vivo, para responder à histeria da propaganda "pêpista" não seria muito complicado (...): um igual painel de 8x3 apenas com a bandeira nacional, íntegra e sem um só rasgão, com o oposto "Sim à regionalização" sobre a esfera armilar, ao centro. (...) A bandeira rasgada do PP é, aliás, sintomática. Na óptica da direcção do PP, os Açores e a Madeira "já eram". Os oito pedaços em que retalham Portugal esquecem, ignoram, vazam as regiões autónomas. Ou então seriam dez "os pedaços". 

Isto de enfrentar descontinuidades ao longo da vida tem que se lhe diga. Às vezes, as minhas filhas mais novas aparecem-me com manifestações exuberantes pró-PP, na convicção de que me provocam a maior das alegrias em extremoso enlevo de pai babado. Compreende-se. A mais nova nasceu já na altura em que eu havia deixado a actividade política e desses outros tempos não lhes chega mais do que eco por amigos. 

Não sendo as crianças especialistas em análise política nem particularmente versadas na história contemporânea do burgo, têm dificuldade em perceber por que razão é que esses esporádicos entusiasmos "pêpistas" não desencadeiam o paternal orgulho que lhes reforçaria a semanada, mas produzem mero enfado ou indiferença. Invariavelmente, perguntam-me: "Mas o pai não é do PP?" Não sei quantas vezes já lhes disse que não, que "sou do CDS". As miúdas, coitaditas, não dão mostras de entender. E chegam a retorquir-me: "Ó pai, é a mesma coisa." Uma vez, para acabar com a conversa, que não me agrada de todo, tive que ser mais radical: "Não, não é a mesma coisa. É o contrário. O PP é o partido que matou o CDS." As raparigas ficaram um pouco aturdidas. E, valha a verdade, nem assim terão entendido. Vou ver se me explico melhor. 

Conhece-se a fúria com que a direcção do PP encara a questão da regionalização. Agora, saltou de novo para o galarim com o controverso cartaz da bandeira nacional rasgada em oito pedaços, as novas oito regiões administrativas do continente. 

Relendo em férias textos antigos, fui consultar um documento para mim memorável: "Manifesto Eleitoral - CDS, Alternativa 76". Trata-se de um marco na história do que foi o CDS a que eu pertenço. Esse texto e essa linha política, designada de "Alternativa 76", fizeram o CDS galgar para 16 por cento nas eleições legislativas de Abril desse ano - 42 deputados. E, aí, num documento onde se detecta, aqui e ali, o punho de Adelino Amaro da Costa, que supervisionou a redacção desse exacto manifesto, lê-se: "É a regionalização um aspecto fundamental da doutrina do CDS, como consta da própria Declaração de Princípios. A regionalização não é para nós uma simples política de circunstância, mas uma definição ideológica: equilibrar o país em termos demográficos e fazer justiça às regiões esquecidas, colocando ao seu dispor os bens fundamentais do progresso e da civilização."

E, depois de defender várias medidas - das quais muitas se foram cumprindo ao longo destes 20 anos, com excepção da descentralização administrativa -, o manifesto concluía: "Por isso, o CDS é pela regionalização. Já que, enfim, a regionalização criaria verdadeiramente um novo conceito de nacionalidade - um conceito assente na solidariedade e interdependência de todas as regiões do país e não mais no simples facto de se depender de uma mesma capital." 

Entre este texto, sinal do carácter do CDS, e o PP actual não há apenas 20 anos de diferença. Há, cavado e oposto, um abismo de compreensão do país, um fosso de ideias e de doutrina, um rasgão - aí sim, um rasgão - de história e de memória. 

O cartaz que o CDS faria, se fosse ainda vivo, para responder à histeria da propaganda "pêpista" não seria muito complicado e grafaria exactamente o último trecho citado: um igual painel de 8x3 apenas com a bandeira nacional, íntegra e sem um só rasgão, com o oposto "Sim à regionalização" sobre a esfera armilar, ao centro. 

Tenho esperança de que as minhas filhas mais novas venham a entender. A bandeira é um sinal. Os sagazes desenvolvimentos de Manuel Monteiro sobre o "povo judaico", cobrindo as ideias do novel "municipalista" Azeredo, são outro. 

Mas a imagem, que se foi gerando face à agressividade hostil da direcção do PP e à crónica ambiguidade do PSD, de que, "à direita, é tudo contra a regionalização" vai-se tornando cada vez mais insuportável. Há que fazer alguma coisa, contra o erróneo monopólio da tribuna. 

É que não é verdade. O PP que fale pelo funil histérico que a sua direcção aspira a representar. Mas não é verdade que os portugueses que não são de esquerda, que não são socialistas nem comunistas sejam todos contra a regionalização. Não é verdade que os eleitores de centro, de centro-direita e de direita sejam hostis à descentralização regional. Muitos revêem-se nela e muitos há 20 anos que esperam por que se faça. 

Quando, em modo de provocador certeiro e encartado, Manuel Monteiro diz, como esta semana no "Semanário", que "a regionalização é feita para entregar o Alentejo aos comunistas", pronuncia uma bestialidade inominável, não medindo sequer os pressupostos tolos e as consequências tremendas do que diz. Se um dia, mais cedo do que tarde, vier a haver eleições regionais para os órgãos autárquicos da região alentejana, o Alentejo não será então "dos comunistas", mas português como sempre e com os alentejanos por uma vez, finalmente, ao timão. E, se porventura, o PCP ganhasse regionalmente essas eleições, a "culpa" apenas seria dos que, à moda de Monteiro, persistem em reconstruir o muro, agora sobre a linha do Tejo, desprezando e ignorando o Alentejo "vermelho". A responsabilidade pertenceria, por inteiro, aos que não querem e nunca quiseram saber dos seus problemas, das suas necessidades, das suas gentes. 

Aqueles que já rasgaram e já apartaram o Alentejo do mapa de Portugal. 

A bandeira rasgada do PP é, aliás, sintomática. Na óptica da direcção do PP, os Açores e a Madeira "já eram". Os oito pedaços em que retalham Portugal esquecem, ignoram, vazam as regiões autónomas. Ou então seriam dez "os pedaços". 

Por sinal, a Madeira mereceria melhor e mais séria atenção por parte do PP, não fosse a sua linha de mera demagogia nacionaleira. Ainda na quinta-feira passada, no "Diário de Notícias", na mesma página em que se dava conta da suave "amnistia" do procurador­ geral da República ao cartaz incendiário, constava uma entrevista de um deputado regional do PSD, Gabriel Drumond, que se entretinha com deslizes a respeito da independência da Madeira ou com trocadilhos entre um novo movimento local - a FAMA - e a FLAMA dormente, chegando a sugerir "outras acções menos pacíficas". Aqui, porém, nem PP, nem PSD se incomodam. Para eles, a Madeira já foi. Pobre país! Triste direita esta, "entreguista", que por alarvidades sem nexo se conduz. 

P.S. - Há coisas que, no nosso espaço, nos causam embaraço, incómodo, até vergonha. Sobre o lamentável artigo do "general Azaredo" e o seu oficial branqueamento, José Alberto Lemos já ontem aqui escreveu o indispensável. Sobre o resto, está quase tudo por fazer. Já se percebe por que é que Fernando Nogueira esteve meia hora a rir à gargalhada quando soube que Carlos Azeredo seria o candidato do PSD e do PP à Câmara do Porto. Esta "nova AD" que se esboça é uma caricatura e uma anedota, quando não traição directa àquilo que a AD foi e por que lutou.



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 17.Agosto.1997

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