Fixe?
Mário Soares voltou à ribalta. Quanto aos seus comentários à "crise Alegre", interessam apenas a alguns sectores do Partido Socialista e às marcações internas que apreciam fazer entre si para desdita própria. E, quanto às críticas de Soares à revisão constitucional, não têm efectivamente nada de especial.
A revisão constitucional tem sido apenas um caso acabado de falta de jeito. Há trechos infelizes e outros desnecessários. Mas, por mim, sou dos que pensam que, no geral, a revisão é boa e que tardava em muitas das mudanças. Sobretudo as alterações introduzidas na melhoria do sistema político e da sua representatividade são da maior importância.
Porém, a forma desastrada como o PS se conduziu deslustrou lamentavelmente muito do seu brilho. Desde o olímpico desprezo a que foi votado Vital Moreira à funesta auto suficiência de Jorge Lacão, passando pela pública demarcação de sectores da bancada socialista, dificilmente o PS poderia ter feito mais mal a si próprio. A verdade é que estava a executar e a dar cumprimento a expressos propósitos do programa eleitoral da "nova maioria" e do próprio projecto de revisão socialista. Mas o modo como se comportou ao longo do processo fez com que o PS produzisse de si mesmo a ideia de que estava a ceder em toda a linha ao PSD. Não é verdade. Mas foi essa a imagem que, em contínua autoflagelação, passou e Soares - fixíssimo - vem agora pôr a cereja no cimo do bolo.
Soares censurará ao partido que fundou esse mesmo alegado facto aparente, pecado capital: o do "favorecimento do PSD" ou de soluções PSD. Mas, curiosamente, quem se coloca claramente ao lado do PSD, senão atrás dele, é o próprio Mário Soares a propósito da regionalização.
Já se ouviu a explicação oficiosa. Soares receará que Cavaco venha a cavalgar uma maciça e vitoriosa maré anti-regionalista. E, assim sendo, Soares antecipa-se, querendo ser ele o faroleiro de tal destino. O argumento não pode ser levado a sério. É um pouco como uma equipa de futebol que, receando os golos do adversário, começa logo a marcar golos na própria baliza... Assim como, por receio da vitória adversa, lhe entregar a taça logo à cabeça. Sem luta.
Os comentários de Mário Soares a respeito da regionalização não têm nada de fixe. São mesmo o contrário da ideia e do sentimento de "ser-se fixe". E representam a contradição mais patética com muito do que o Presidente Mário Soares fez e ainda representa.
Mário Soares correu o país todo e fez das "Presidências abertas" um emblema do seu estilo, uma sua marca para o futuro. Quando vemos os itinerantes "Governo em diálogo" de António Guterres ou Jorge Sampaio a dar tratos de polé à imaginação para fazer o mesmo sem lhe dar o mesmo nome, é ainda à continuação daquele estilo inaugurado por Mário Soares que assistimos.
Mário Soares conhece o país todo, quadrado por quadrado, quase cara a cara, quase mão a mão. Não é crível que partilhe um segundo que seja da ideia de que, pelos entrefolhos da descentralização regional, são separatismos às grosas que aí vêm. Não é admissível que se irmane nas baboseiras do "país a retalho". Não é pensável que dê o mínimo crédito ao pavor histérico - cruzes, credo! - de que cada cara que viu abrir-se no interior do país em sorrisos de esperança ou de que cada mão que andou apertando por aí rasgando horizontes de desenvolvimento e perspectivas de proximidade não seja mais, afinal, do que um traidor à espreita para implodir a unidade da pátria. Não é fácil a ideia de adivinhar, e menos de ver, Mário Soares emparceirar pelos trilhos do reaccionarismo ducal do paço central, com tudo o que o marca: medo, e medo irracional; paternalismo, e paternalismo diletante; indiferença, e indiferença egoísta; suficiência, e suficiência instalada; distância, e distância soberba; não legítimo poder, mas poderio, vontade de poderio.
Aquilo que aqui se pedirá a Mário Soares é uma prova de sinceridade, de básico humanismo. Das duas, uma: ou as "Presidências abertas" foram palhaçada vulgar e frugal representação, ou não foram.
Se não foram, Soares e suas comitivas ter-se-ão apercebido de algumas coisas essenciais. Terão verificado "in loco" as profundas necessidades - diria urgências - de desenvolvimento que se detecta por aí. Terão ouvido os queixumes antigos de oportunidades perdidas. Terão visto regiões inteiras que se desertificam, incapazes de rasgar futuros sonhados para os seus filhos. Terão visto trechos enormes do nosso Portugal a votar outra vez com os pés, num "remake" dos anos 60 da miséria da emigração clandestina - e tudo isto ao lado de bairros de opulência. Terão ouvido reclamações e pedidos por uma administração pública mais próxima. Ter-se-ão chocado com tanta coisa pendente tão fácil de resolver e que se arrasta por corredores intermináveis de indiferença e de distância. Nalgum pulsar juvenil que ainda guardassem seus corações, ter-se-ão quase revoltado de genuína indignação contra um poder alienado por longínquo. E terão visto sobretudo como é tão sempre o mesmo, tão caloroso e tão amável, tão desejoso de futuro e tão fraterno nas raízes este nosso Portugal. Mas, como sendo tão sempre o mesmo, o vemos tão variado, o percebemos tão distinto, o amamos tão diverso quando o vemos de Bragança ou de Beja, ou de Viseu, ou de Faro, ou de Castelo Branco, ou do Porto, ou sempre, sempre, sempre só pelo óculo de Lisboa. Como sendo tão sempre o mesmo, o projectamos tão diferente quando o olhamos das varandas de S. Bento ou de Belém, ou já também nos patamares do Douro, nas escarpas e vales da serra, nas planícies do Alentejo, nas cores do Minho, na extensa lezíria, no brio do Porto ou no pulsar industrial de Aveiro, de Leiria ou do Ave.
A regionalização é só isso. É esse essencial para o salto que falta a Portugal. Tornar mais próxima a administração, mais autêntico o planeamento, mais dinâmico o desenvolvimento. Mais resposta e melhor resposta aos anseios dos portugueses. Nas suas terras, nas suas regiões de origem e de trabalho. Não será que eles serão capazes, não será que nós seremos capazes de o fazer melhor cada um no seu lugar? Ou será que teremos que estar sempre à espera da ilustre visitação de uma qualquer Vossa Senhoria? Fixe?
Fixe.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 10.Agosto.1997
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