Os alienados


Anteontem, o PÚBLICO dava conta das últimas estatísticas da Associação Mundial de Jornais. Os indicadores são preocupantes. Em Portugal, como de costume, piores que em quase todo o lado. Ocupamos um lugar da cauda nos índices de leitura de jornais e o fosso entre leitores masculinos e femininos é muito acentuado - 56 por cento de homens e 24 por cento de mulheres que lêem um jornal por dia. 

Se atendermos ao que estes leitores efectivamente lêem, as conclusões são ainda mais edificantes. Para mim, não constitui propriamente um mistério, mas representa um sinal que, hoje, em Portugal, exista aparentemente mercado - e mercado próspero - para três jornais desportivos diários. O que já constitui um mistério é como é que alguém se dá por informado com a única leitura diária fidelíssima de apenas um jornal desportivo. Um jornal que, girando à volta do futebol, tem que, pela natureza das coisas, esticar assunto ao longo de cada semana, e na época do defeso, pelo constante recurso a mil e uma intrigas, a carradas de insultos e provocações entre protagonistas, a projectos de transferências infindos, a sonhos feitos e desfeitos, a heróis postos e depostos, a casos só entreabertos e quase sempre encerrados. 

Há dias, não me limitei a abrir a boca. Escancarei-a. Um jornal de circulação nacional, não sei já se na edição da manhã, se da tarde, trazia, em letras garrafais, à largura de toda a primeira página, a verdadeira notícia: Sérgio abandona Dinorah. Fui-me informar. 

O caso prende-se com a novela A Indomada, presentemente em exibição com avantajados "ratings", e diz respeito ao malvado Sérgio Murillo, que, depois de expropriar o rim da ingénua Dinorah, sua noiva, a deixa sem marido e, claro... sem rim. A malvadez é, de facto, inominável e o destaque mais que justificado. Pode lá ser! Só surpreenderá que o Ministério Público ainda não tenha aberto inquérito e que o Presidente da República não emitisse comentário. O facto de esse jornal ser do mesmo dono do canal exibidor da novela não é mais do que coincidência sem importância. 

Conhecida a novelodependência que marca as programações televisivas e que as audiências esmagadoras registam, dei-me ao cuidado de, com a preciosa ajuda de uma revista do meio, ir verificar o que é que, actualmente, preocupa de verdade os meus concidadãos. Fiquei esclarecido. Altiva descobre que Inês é mulher de Hércules. Leonel ameaça Reinaldo. Macário diz a Violante que Santiago não voltará a andar. Nando beija Marisa. Costa tem um enfarte. Maurício revela a Saraiva que a mulher anda a enganá-lo. Tonho é internado. Randu ajuda Kassandra. Valentim desaparece. Ximbica encontra documentos que comprometem Úrsula. Arsénio procura Rosa Maria para provar as suas qualidades de macho. Jacobino é encontrado na cama com um homem. Milica atropela a filha. Tito acusa o pai. Alfredo informa Lola de que Carlos morreu durante a operação. 

Portugal está salvo! Um povo que diariamente se confronta com tais transes e sobrevive resiste a tudo. 

A geração a que pertenço obcecava-se, particularmente pelos anos 60 e 70, com as "alienações" alheias. O futebol era dos alvos favoritos de tais arremetidas - acusação: ser o instrumento de alienação de massas pela classe dominante. A religião, vista e descrita como "o ópio do povo", também apanhava por tabela. Em Portugal, caricaturavam-se os três F: Fátima, futebol e fado. E havia outros objectos predilectos. Com um grupo de amigos, aí pelos meus dezassete anos, chegámos a editar três ou quatro números de um jornaleco que dava pelo aliciante título de "Sexo, Violência e Bola" e que se entretinha a chuchar com a coisa: por um lado, com as "alienações"; por outro, com as bizarrias "anti-alienistas". Cultura do tempo. 

O objecto da crítica era bom de ver-se. Num quadro em que fervilhavam todos os amanhãs que cantam, El Dorados às centenas ao alcance de uma flor segundo uns ou na ponta de uma espingarda segundo outros, os objectos de "alienação" distraíam as massas, desviando-as do que realmente importava: a revolução global. Ou, como diríamos hoje, dos problemas sociais do tempo. A febre era, aliás, mundial, ou melhor, atravessava todo o mundo ocidental: desde as lutas contra a guerra do Vietname nos EUA ao Maio de 68 em Paris, passando pela veneração da guerrilha guevarista na América Latina, pelas lutas democráticas na Península Ibérica (e a guerra de África, no caso português) e pelo maoismo "à la page" universalmente. 

É interessante avaliarmos onde se chegou trinta anos depois. E meditar porquê. 

A verdade, hoje, é que não estamos muito melhor. Antes pior. De um lado, muitos dos arautos anti-alienistas foram popularizando o mais politicamente correcto "sex, drugs and rock'n roll", que fez escola, deixou rasto e veio para ficar. Do outro lado, deixando de parte a religião que nunca deveria ter sido chamada a estas querelas - mas que atravessa a sua crise - e exceptuando o fado - que, todavia, resistiu, libertou-se, melhorou e renova-se -, os objectos tradicionais mantiveram-se e multiplicaram-se. A bola domina, o sexo e a violência pontificam na cultura audiovisual, o "fado - canção nacional" cedeu lugar ao "pimba" geral, a fofoca e a imprensa rosa conhecem dias como nunca, a novela usurpou a quase totalidade do ecrã. 

Se se investigasse o percurso pessoal de muitos dos produtores, directores e programadores de hoje (sobretudo os programadores de televisão, impositores do popularizado modelo "xunga e pimba, prá frente"), por certo encontraremos muitos que se entretiveram a atirar pedras ou a vociferar insultos à porta da Embaixada dos EUA, na Av. Duque de Loulé, que era desporto favorito da época. Desdenhavam e abominavam tudo o que apartasse as atenções das massas de tais propósitos. Para isto? 

Nunca perceberei como é que uma geração tão hostil à "alienação" produziu isto. E somos nós: produtores e consumidores. Nunca entenderei, por exemplo, como é que uma geração que mofava dos Corin Tellado e das publicações tipo "Capricho" veio a utilizar, a multiplicar e a impor como modelo cultural televisivo o da telenovela a toda hora - nesta altura, em três canais, estão 12 -telenovelas - 12 em exibição todas as semanas. E o modelo inclui mesmo moldar a informação em conformidade de estilo e de géneros. 

Talvez seja a minha, afinal, a "geração rasca". 

Na sexta-feira, no remodelado Caderno 3 do "Independente", António Barreto indignava­ se justamente com a indisponibilidade de estatísticas actuais, completas e rigorosas sobre a realidade portuguesa. E indignava-se mais com a geral indiferença dos seus compatriotas - mesmo os mais ilustres - perante tal omissão e a real mutilação da democracia que constitui. Se fosse só isso...



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 24.Agosto.1997

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