A próxima vítima


No respectivo "site" da Internet www.nationalenquirer.com/index-fst.html, anteontem ao fim do dia, ainda constava este aviso do "National Enquirer": "Pedimos desculpa pelo título de primeira página sobre a princesa Diana - 'Di goes sex mad' - que está ainda nas bancas nalguns locais. Esta edição foi fechada na semana passada antes da sua morte e posta à venda na sexta-feira 29 de Agosto. Essa edição está actualmente a ser substituída tão depressa quanto somos capazes por uma edição especial de 72 páginas de homenagem: 'Um adeus à princesa que todos amávamos... Di - As suas últimas horas'." 

O "National Enquirer" é um dos tais tablóides. Vende milhões nos Estados Unidos. É produto de referência no seu género. O director, Steve Coz, é o mesmo que, logo na madrugada de domingo, tomou a palavra como porta-voz da "imprensa" e lançou pela CNN o apelo mundial para que ninguém comprasse as fotografias tiradas por "paparazzi", perseguidores dessa noite sinistra. Adiantou pormenores - já estavam à venda na bolsa do sector por uns módicos um milhão de dólares cada chapa (quase 200 mil contos). 

Compreende-se o embaraço do cavalheiro. Ter um título daqueles - "Diana louca por sexo" -, e a "história" que se imagina, na edição que está à venda justamente no dia em que Diana morre perseguida pelos fotógrafos que buscavam mais uma chapa da sua relação com Dodi, é forte. Já é azar! 

O apelo comovedor do sr. Coz consta, aliás, em letras gordas, no mesmo "website", saltando para a interessante "Enquirer Hotline": "O 'National Enquirer' não comprará qualquer das fotografias tiradas pelos 'paparazzi' que de moto perseguiam a princesa. Pedimos ao resto da imprensa tablóide que se junte no mesmo boicote." Mas, logo a seguir, sobreviveu na mesma página o aviso geral da comum rotina destes tablóides dirigido universalmente a qualquer utilizador da Net: "Sabe duma dica? O 'National Enquirer' paga até 500 dólares [quase 100 contos] por ideias de histórias - e mais ainda por dicas quentes sobre celebridades. Resuma a sua proposta de história e mande-nos por E-mail. Pode ganhar muitos dólares!" Fica-se devidamente esclarecido sobre o calibre e o carácter desta rapaziada. 

Alguns, com sinceridade ou sem ela, exprimindo receios sérios ou pretendendo apenas contramanipular o debate, absolvendo o ilícito, disseram temer pela "liberdade de imprensa", tamanha e tão generalizada foi a reacção desencadeada em todo o mundo pela morte de Diana e as suas intoleráveis circunstâncias. 

Não é verdade. A liberdade de imprensa não está em causa. Este "jornalismo" não realiza nenhuma liberdade - mais uma "soltura". É ilícito. Ofende um bem precioso, direito humano universal, que só pode estar na disponibilidade dos próprios: o que é privado. 

Esse "jornalismo-melga" - que faz da violação uma regra, da intrusão uma especialidade, da difamação uma pastagem, que não recua diante de nenhum pedido nem pára em qualquer barreira, ausente de qualquer tipo de escrúpulo, ignorante de alguma ética que fosse - tem que estar em causa. 

Sabe-se do que isso vive. Da insaciável curiosidade da multidão a respeito da vida dos seus ídolos - bem de duvidosa legitimidade e de anónimos donos. Alimenta-se no coração dos populares de duas poderosas gasolinas: o amor acrisolado e a suave inveja. E hipocrisia, hipocrisia, sempre muita hipocrisia. Mistura-se tudo, agita-se bem, acrescenta­ se sal e pimenta q.b. ao longo dos contínuos enredos e serve-se. De preferência quente. 

Os sonhos, fantasias ou ódios de estimação de cada um vão flutuando. Em cabeleireiros, salas de espera, transportes públicos, mesas de café ou vãos de escada, a multidão costureirinha afaga a variada gama das próprias emoções, desde a bajulação mais rendida ao juízo mais soez, passando por várias tonalidades intermédias de pieguice ou de cinismo, ou de pura ordinarice, conforme o prato do dia que é servido. 

Assim gira esse "jornalismo". Quanto mais privado, melhor. Sempre com grandes tiragens e grandes números. O fotógrafo intruso que, por teleobjectiva, sacou a fotografia "The kiss", que, para gáudio e ávido consumo da hoje chorosa multidão, selou há semanas o romance Diana-Dodi, ganhou com essa simples chapa 400.000 dólares (mais de 70.000 contos). Os tablóides e outros muito mais. Hoje, esse fotógrafo confessa-se muito chocado. Tal como a multidão. Mas 400.000 já lá cantam... São números que embriagam. E põem tudo louco.

As palavras justas do irmão de Diana, reagindo à tragédia e denunciando a perseguição, não visavam os fotógrafos dessa noite tremenda. A perseguição de que falou não foi a que tivesse começado à porta do hotel. Isso é com o processo judicial. Mas a que, no galope infernal desse "jornalismo" do espreitanço, começou há muitos anos atrás e se colou a Diana como uma lapa. Escutas, fotos indiscretas, teleobjectivas aos magotes, ditos e mexericos de toda a ordem, comentários absurdos, muita intriga, fofoca às grosas, suposições de toda a sorte - tudo serviu para, semana a semana, alimentar a novela que vende e, ora bajuladora melosa nos "dias felizes", ora varejeira implacável à volta das chagas e dificuldades de cada um, infernizar uma existência, atropelar um casamento e, finalmente, destruir uma vida. Sempre por muito dinheiro. E pelo grande amor da multidão. Era bom que a multidão sentisse e mostrasse também algum remorso.

Não é provável. Até porque já elegeu outro bode expiatório - a família real. E sobretudo já apontou a próxima vítima - o príncipe William. Justamente o tão amado, o tão acarinhado William, o tão parecido com sua mãe, a adorada Diana.

Fez-me pena ver o rapazito já metido nestes prepares aos 15 anos, com o irmão de 13. E, em vez de os deixarem em paz, terem-nos já forçado a vir de escantilhão, mais cedo do que o previsto, desde a Escócia pela mão do pai - o mal-amado - e sob a oficial presença matriarca! da avó-rainha, mostrarem-se, deixarem-se tocar, saciarem os humores da multidão londrina.

William, o eleito, é adolescente. Vai ter namoros, namoricos, porventura escapadas. Sairá ao tio André? Tem bom porte e é bonitinho. Consta que tem bom feitio.

É. William presta-se. Já o meteram no coração de crises constitucionais, disputando a sucessão ao pai. O cenário está montado e o guião em marcha. A marcação começou. Câmara - acção! Vai amar, vai chorar, vai zangar-se. Vai cair e levantar-se. Vai sorrir e ficar tenso. Haverá dias de nobreza e outros de ridículo. Vão policiar-lhe amores e desamores, gostos e desgostos. Vão caçar confidências e comprar ou inventar revelações. Vão analisar aparências e interpretar gestos e olhares. Vão-lhe ouvir os colegas de colégio, um por um, a ver se algum, despeitado por não lhe ter emprestado o lápis, faz alguma revelação menos lustrosa e sobretudo sórdida. Vão escutá-lo em busca de uma zanga com o pai ou a ver se berra com a avó. Vão querer saber, subornando criadas, o que é que ele pensa de Camila. Chegado o tempo, vão querer saber como faz sexo. Em todos os tons. Vão procurar fotografá-lo em cuecas - e sobretudo sem elas. A todo o preço.

E diz o povo lacrimejante: "Ah! Coitadinho! Tão igual à sua mãe." É isso mesmo.

A multidão já lhe deu o beijo de Judas e já indicou ao sr. Coz e cia. a próxima vítima. Há amores assim. Amores que asfixiam. Amores que estrafegam. Amores que matam - tão fortes como o abraço do urso e a contorção da jibóia. Com os abutres sempre à espreita.



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 7.Setembro.1997

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