As mentiras da moda
O recente coral intitulado "negociata PS-PCP", cantado em tom de direita grave, é deveras extraordinário. (...) Não se esperaria ouvir tal argumento em Portugal depois de mais de 20 anos de regime democrático. Esse coral passa por cima de um pormenorzito, talvez decisivo: se acontecesse que o PCP viesse a ganhar umas eleições regionais alentejanas, era porque recebera os votos para tanto - o que não é propriamente uma "entrega", mas, salvo erro, um direito próprio.
Nunca entendi e nunca entenderei a sanha dos anti-regionalistas contra a regionalização. O defeito é talvez meu. Mas, à parte o ruído geral de bloqueio que promovem, não consigo perceber um só dos argumentos ou não argumentos que lançam.
Não sendo por mera acomodação, por centralismo paternalista ou autoritário, por reaccionarismo medroso e atávico ou por cultura do puro privilégio, não consigo compreender como é que os que têm tudo ou quase tudo ao pé da porta não entenderão mesmo - ou aparentam não entender - os benefícios para o país, para o desenvolvimento e para as populações deste passo estratégico da reforma do Estado e de descentralização da administração pública.
Esbarro na completa incapacidade de compreender como é que os que se sentem confortáveis, instalados ou simplesmente rotinados nos actuais sistemas de poder aos mais diversos níveis - político e administrativo, económico e financeiro, cultural e mediático - reagem contra a mais equilibrada redistribuição dos centros de decisão e o rasgar de novos quadros de solidariedade intermédia no espaço comum do país. E espanto-me com a ligeireza - às vezes pedante - com que descartam as óbvias vantagens que, por questões de eficiência, para melhoria do serviço público e por elementar razão de justiça, tradicionalmente sempre se associaram à descentralização administrativa, no que representa de aproximação aos administrados, aumento de produtividade, reforço do controlo democrático pelos cidadãos, maior e melhor de capacidade de resposta e dinamização do processo de desenvolvimento.
Para mais, o barulho evoluiu para a simples manipulação de mentiras flagrantes.
O recente coral intitulado "negociata PS-PCP", cantado em tom de direita grave, é deveras extraordinário. Os dirigentes do PP e do PSD nunca nos elucidaram devidamente em que é que teria consistido essa tão torpe patifaria; mas, a julgar pelos dedos em riste e esgares faciais, é de presumir que o motivo particular do escândalo consista na "entrega do Alentejo aos comunistas".
Não se esperaria ouvir tal argumento em Portugal depois de mais de 20 anos de regime democrático. Esse coral passa por cima de um pormenorzito, talvez decisivo: se - acontecesse que o PCP viesse a ganhar umas eleições regionais alentejanas, era porque recebera os votos para tanto - o que não é propriamente uma "entrega", mas, salvo erro, um direito próprio.
Vou tendo, aliás, a cada vez mais arreigada convicção de que a condução desastrada desta e doutras questões por parte das direcções dos partidos à direita, desertando das preocupações dos seus eleitores e afastando-se cada vez mais do sentir das populações, é que está a criar condições crescentes para que essa dita "entrega" possa acontecer. E fico também à espera de um projecto de lei do PP e do professor Marcelo Rebelo de Sousa a propor a automática extinção dos municípios em que os comunistas ganhem eleições.
Isso sim, na compita que Marcelo e Monteiro alimentam, seria vigorosamente de "direita" e verdadeiramente patriótico.
A mentira da "negociata" não tem ponta por onde se lhe pegue. E, se tivermos presente que é nessas mesmas águas que se agitaram acenos apressados às "cinco regiões", então é que o descaramento é total - o Alentejo definido para a actual CCR, o Alentejo das tais "cinco regiões", seria politicamente o mesmo que agora se agita para tão sonoro escândalo. Mas, enfim, uma "negociata PSD-PCP" sempre seria outra coisa. Talvez seja do sabor a laranja...
O segundo andamento da ilustre cantata é a do velhinho "job for the boys". Um bocadinho gasto. Mas dá sempre jeito. Ficou no ouvido como os refrões pimba. Estimula invejas e intrigas, provoca falatório - um verdadeiro "hit".
Também passa ao lado de outro pormenorzito: hoje, no actual quadro de funcionamento da administração, meramente desconcentrado, é que o escândalo, quando ocorre, é real e maior. Sempre que muda o governo em Lisboa, é um verdadeiro corrupio de cunhas, pressões e influências para tudo o que é departamento desconcentrado, direcção regional ou distrital. Há áreas com tradições verdadeiramente lamentáveis, com culpas de vários partidos. Hoje, como se está, é que os riscos de regabofe partidocrático nas rodas da tômbola eleitoral são totais. É nos entrefolhos da administração centralizada que justamente mais medram as teias do caciquismo (sobas locais do poder central) ou a cultura do fartar-vilanagem. É dos livros.
Com a regionalização, que não é uma mezinha, é certo que ninguém pode garantir que o problema acabe, até porque pertence à natureza humana e à dos sistemas eleitorais. Mas o que é certo é que a situação melhorará acentuadamente com o controlo mais apertado das opiniões públicas locais e regionais. E, nas escolhas em que a política seja relevante , sempre prevalecerão aqueles que as populações directamente escolherem - o que é uma inestimável vantagem. Acabarão ou sofrerão drástica redução as intermináveis legiões e regimentos de nomeados e desnomeados ao sabor das migrações eleitorais na estação das legislativas.
Ouvir os anti-regionalistas dá sempre a ideia de que hoje vivemos no melhor dos mundos, que o funcionamento do Estado e da administração são excelentes, que não há despesismos nem desperdícios na coisa pública, que os empecilhos burocráticos não existem, que as repartições e os funcionários são atentos e diligentes, que os processos administrativos são céleres e claros.
Litoral e interior não existem, capital e província é passado, o desenvolvimento regional está aí a todo o gás, as assimetrias não existem, estamos todos bem servidos e por igual. Ouvi-los perorar contra a regionalização é um êxtase. Dir-se-ia que, hoje, tudo é um reino de produtividade e eficiência, de resposta sábia e pronta às necessidades e anseios das populações, de gestão parcimoniosa, de economia, de ponderados critérios universalmente aceites. A descentralização regional é que viria a criar um catastrófico desastre sobre tal reino de milagre.
A verdade - todos o sabemos - é ao contrário. O "desastre" é hoje. Nós é que já estaremos talvez demasiado habituados a ele. Mas o país justamente tem direito a muito mais do que hoje e a ser servido bem melhor do que hoje o servem. A regionalização permite exactamente - e potencia - acentuadas melhoras em todos aqueles planos. É um verdadeiro eixo vertebral de reforma estratégica. Como? Aproximando.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 21.Setembro.1997
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