Benfica - viragem e recarga
O quadro da queda da direcção de Manuel Damásio resume-se em poucas palavras. A época passada correu desgraçadamente. Em vários planos, a síntese era fatal: a pior temporada de sempre do Sport Lisboa e Benfica. Mas até isso pareceu, agora, ser mentira - a época deste ano abriu de forma que toda a gente reza o credo para que o triste recorde negativo de 1996-97 não seja batido em 1997-98. A viragem tinha que ser. E Damásio leva o reconhecimento do clube por não se impor e ter de sair aos encontrões. Muitos simplificarão com os azares da bola, ao modo das chicotadas psicológicas que atormentam treinadores. Foi o Rio Ave - dirão. Também foi. Mas o problema chegou muito mais fundo. Quando um clube como o Benfica atinge um ponto em que tem os seus destinos e o seu futuro dependente apenas dos pés do João Pinto, é porque nem os destinos, nem o futuro estão mais nas mãos da direcção. Não pode ser. O Benfica precisa urgentemente de uma direcção que tenha mão nisto. Uma direcção não preparada apenas para colher as palmas dos golos dos jogadores, mas realmente aparelhada para atravessar, serena, com determinação séria e capacidade estratégica, borrascas e tempos difíceis.
Porque - não haja ilusões - são muito duros e muito complexos os caminhos e os tempos que aí vêm.
O sentimento com que sigo a arrastada crise do Benfica não é só de desgosto, mas próprio de quem assiste a uma desmoralização alastrante e a uma contínua e penosa expropriação de referências anímicas do clube.
A equipa de futebol, menina dos nossos olhos, foi-se parecendo cada vez mais com o átrio da estação de Santa Apolónia, sempre com gente a entrar e a sair. Pior ainda: parecida com o átrio da estação de Santa Apolónia no Verão, cheia de turistas de mochila às costas e com muito pouca gente de cá. O "glorioso Benfica" que, servi-lo, constituía uma honra e um título de glória para qualquer treinador, português ou estrangeiro, corre o risco de se tornar numa praga para as suas carreiras profissionais - de bandeja de prata vamos passando a frigideira de inox. A vida institucional e associativa evoluiu para a dinâmica estéril de uma capoeira: cacareja-se, cacareja-se e não sai nada. E até a "marca" Benfica - que, no fundo, é a única coisa que nos traz por cá, desde há 90 anos - esteve por um triz, num acesso moribundo de falta de imaginação jurídica, de preguiça de criatividade comercial e de total rendição financeira, de passar de vez do clube-instituição para a sociedade anónima desportiva - um pouco como aquele que, tendo um negócio de água, vende a fonte.
As proporções que a crise do Benfica atingiu e o imperativo de criar, regular e lançar a sociedade desportiva (o acto estruturante mais importante desde a fundação do clube no princípio do século) geram em muitos a ideia instintiva da urgência da unidade. É sempre assim - nos clubes, nas comunidades e até nos países. Quando a tempestade parece grande, os reflexos unitaristas são imediatos. Divergir torna-se proibido, concorrer é pecado, consenso passa a código obrigatório. A pressão condicionadora já anda aí.
Desconfio sempre dos "governos de salvação nacional". A experiência nunca foi brilhante. Os benfiquistas devemos guardar-nos disso. Bem ao contrário dos sentimentos generosos que animarão alguns dos seus promotores, o unitarismo compulsivo é o perigo maior que o Sport Lisboa e Benfica enfrenta nestas eleições, em que tanto do nosso clube se joga e decide.
Bem sei que "a união faz a força". Só que a união nem se faz assim, nem a força tem nada a ver com isso. O consensualismo é dos vícios mais perigosos - e, às vezes, até perversos - de qualquer comunidade. A aparência de unidade que ostenta não vem de nenhum sentimento real e profundo, mas é fruto instantâneo e frágil de um mero tique. Ora, os tiques unicitários passam depressa. Quem for cozinheiro, percebe-me facilmente: uma maionese feita à pressa deslaça num instante. À primeira dificuldade - e vão ser imensas -, começa tudo a abanar. Lá se vai a falsa "unidade" feita com cola de farinha. Reabre o ciclo da capoeira. Sem galo.
O impulso do "todos juntinhos" é compreensível, mas nunca é bom conselheiro. A experiência diz que resulta sempre mais do sistema, apoquentado com o espectro do cataclismo global da corte, do que da massa associativa anónima, que preza soluções galhardas e claras. "Todos juntinhos" raramente é solução. Antes, o seu peso é tanto e as teias tão feitas em novelo e embaraço que só abrem o caminho a ir direito ao fundo.
Esse caminho, do baralhar e dar de novo, em que se metem outra vez todos os papelinhos num chapéu a ver quem sai desta vez, não tem nada de saúde. Frequentemente o que sai daí é um cavalheiro com ar grave ou uma dama de pose solene a dizer algo como isto: "É com muita honra que, com grande sacrifício pessoal, contrariedade familiar e prejuízo profissional, aceito o pesado encargo de servir o nosso clube nesta hora tão difícil."
É verdade que o momento é difícil, muito difícil mesmo. Mas, por isso mesmo, o Benfica não precisa de um presidente que se sacrifique tanto assim. Obrigadinho pela atenção, mas deixe-se estar.
Precisamos exactamente do oposto desse tique, talvez generoso e bem intencionado, mas frágil e trémulo, cinzento e baço, assustado e medroso. Entre muitas outras coisas, o Sport Lisboa e Benfica precisa à cabeça de um choque vitamínico.
Se há realmente ideias por aí, se há verdadeiramente projectos, se há estilos efectivamente diferentes, se há equipas dirigentes alternativas, se há mais do que um a sentir-se com condições, que se apresentem, assumam-se e vamos a votos. As lideranças forjam-se sempre na disputa leal e aberta, não na paz podre dos cartórios, nos negócios interesseiros de corredor ou nas falsas poses para o retrato de grupo.
Nenhum benfiquista consciente da extensa gravidade da situação do clube pode querer um "sacrificado" como presidente, embrenhado nos nós entrelaçados de um directório notável e figurão. Antes é preciso que o presidente que vier corra com alegria e entusiasmo, com brio e impulso próprio, com convicção em si mesmo e na sua equipa, sem dependências de tratados internos com grupos e grupinhos. Um presidente que, uma vez eleito, legitima autonomamente nas urnas, forte das suas próprias forças, possa por isso mesmo comunicar a todo o clube, como fruto automático, aquilo de que estamos todos precisados: a energia, a galhardia, o garbo, o dinamismo, a coragem, a vibração, a seriedade, a lisura, a confiança, o arrebatamento com que tenha corrido, debatido e vencido. Aquilo que o Sport Lisboa e Benfica reclama como pão para a boca e mola para a alma são vitaminas - não pachos, nem pensos, nem aspirinas.
O Benfica é das mais antigas escolas democráticas do país. Não tenham medo das eleições. No fim, sendo a disputa leal, somos todos sempre do Benfica.
A união, a união real, existe nos sócios e nunca deixou de existir. Não há necessidade dea forjar na secretaria. O sistema que não se apoquente.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 28.Setembro.1997
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