Ditadura global
A nossa política externa não pode ser herdeira da pior face do "barrosismo": não a que semeou as esperanças de Bicesse, mas precisamente aquela que está associada ao seu fracasso sangrento. O embaixador que foi medianeiro fracassado não pode verter frustrações próprias em parcialidade alinhada, contrária ao melhor interesse de Portugal e sempre crítica para a construção e o enraizamento da paz.
Em boa verdade, este artigo vem com 30 dias de atraso - a resolução do mal já estava anunciada, embora em suspenso. Mas a verdade também é que as sanções impostas pelas Nações Unidas nunca deviam ter existido. Têm notório cheirinho a "big brother", comunicando-se numa teia em rede mundial. Representam nalguns dos seus recortes precedente que dá que pensar.
Há sanções que entram pelo absurdo da mais abjecta das tiranias, negam a história das Nações Unidas e ultrapassam limites perigosíssimos.
"Impedir a entrada ou trânsito pelos territórios dos Estados-membros de todos os altos quadros da UNITA e seus familiares imediatos", "suspender ou cancelar todos os documentos de viagem, vistos ou licenças de residência passados a altos quadros da UNITA e seus familiares imediatos" e determinar "o encerramento imediato e completo de todos os escritórios da UNITA" em todo o mundo - constitui sinal intolerável de implacável perseguição e excede tudo o que possa haver-se por tolerável. Perseguir até familiares? O que é isto? Onde chegámos? Voltámos à idade da pedra dos direitos humanos?
Em plena guerra fria, uma resolução assim não seria de todo possível. É paradoxal que, virada a página negra do "muro da vergonha", se tornem possíveis vergonhas maiores e se queira impor um outro tipo de muro, agora universal.
A 10 de Dezembro de 1948, a Assembleia Geral da ONU aprovava e proclamava a Declaração Universal dos Direitos do Homem, emblema da segunda metade do século, inspiração e fundamento de uma nova era no milénio por vir.
"Todos têm o direito de circular livremente e de escolher a sua residência" , bem como "o direito de sair de qualquer país, incluindo o seu, e de regressar à sua pátria". "Todos têm direito a liberdade de pensamento e de consciência". "Todo o indivíduo tem o direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem embargo de fronteiras, as informações e as ideias, por qualquer forma que seja". "Todos têm o direito à liberdade de reunião e de associação pacífica". "Todos podem invocar os direitos e as liberdades proclamadas na presente Declaração, sem distinção alguma, quer provenha de raça, quer de cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer outra, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou outra situação". "Todos têm direito a que reine, no plano nacional e no plano internacional, uma ordem que torne possível pôr em prática os direitos e as liberdades enunciadas na presente declaração." Estes são alguns dos direitos universais que esta tristíssima resolução das Nações Unidas se afadiga a desmentir e a afrontar.
A questão não está em saber se a UNITA tem razão ou não tem. Por mim, opino que não tem. Sou dos que o lamento, mas a verdade é que a UNITA se desacreditou extraordinariamente nos últimos anos - de combatentes pela pátria, pela democracia e pela liberdade contra a usurpação cubana transitaram para irmãos gémeos dos senhores que imperam; o discurso humanista que emoldurava Savimbi cedeu o passo a puros interesses de poder a qualquer preço, entremeados por populismos bélicos e radicalismos racistas inconcebíveis; as promessas de paz e de humanidade foram violentamente atropeladas pela "real politik" do poder à mão armada. O crédito alienado pela UNITA levará anos a repor.
Porém, toda o mundo sabe que o outro lado não é melhor - se calhar, pior e, no mínimo, igual. A verdade é que, empunhando a batuta a partir do trono conquistado e defendido pela força, lhe tem pertencido sempre a ensanguentada responsabilidade de marcar as regras por que se foi arruinando a vida, o dia-a-dia e as esperanças dos angolanos. Como se isso não chegasse, como se não bastasse ter semeado a destruição na sua terra que lhe cabe governar, os acontecimentos recentes dos dois Congos vizinhos puseram ainda a nu o MPLA como aspirante a potência destabilizadora de toda a região.
Em qualquer caso, a questão não é essa. A questão é que as Nações Unidas, essas, tenham pisado, ofendido e ultrapassado o risco para além do qual a liberdade é amordaçada, a paz se torna mais difícil, a dignidade humana se esmaga e a reacção violenta se estimula ou o esmagamento vil se instala.
Diz, por exemplo, o art. 55.º da Carta das Nações Unidas: «Com o fim de criar as condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão (...) o respeito universal e efectivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos.»
A ONU tem uma longa tradição de afirmação humanitária, de favorecimento dos meios civis de discussão e de construção políticas, de protecção da liberdade de expressão, da liberdade de circulação e do direito de asilo contra ditaduras e totalitarismos de qualquer sorte. Como podem, assim, as Nações Unidas colocarem-se contra si próprias? Como podem pisar os seus fundamentos e os seus pergaminhos? Como podem alinhar pela cartilha errada? Como podem, momentaneamente cegas ou já cínicas de vez, mundializar a tirania e consolidar o arbítrio?
Críticas severas são feitas, além disso, pela UNITA à actuação do embaixador português no Conselho de Segurança, reavivando as nunca esquecidas saudades de Pedro Catarino. E a própria cizânia já parece reinar pelas Necessidades face à obediente pressa na aplicação das sanções.
Na questão de Angola, fora das questões comuns de quaisquer relações Estado-a-Estado, Portugal só pode ter uma referência: o martirizado povo angolano. E só pode ter um guia e um propósito: a rigorosa neutralidade face aos contendores históricos, o olhar atento sobre as forças civis, a atenção nas novas gerações, a permanente disponibilidade para os alicerces verdadeiros de uma paz duradoura através da reconciliação.
A política externa portuguesa não pode ser herdeira, teimosa e comprometida, da pior face do "barrosismo" anterior: não a que semeou as esperanças de Bicesse, mas precisamente aquela que está associada ao seu fracasso sangrento. O embaixador que foi medianeiro fracassado não pode verter frustrações próprias em parcialidade alinhada, contrária ao melhor interesse de Portugal e sempre crítica para a construção e o enraizamento da paz. E ao Palácio das Necessidades pede-se a tranquilidade e a discrição própria dos assuntos de Estado, bem como a prudência, a serenidade e a isenção adequadas à salvaguarda das questões de princípio, dos valores essenciais e da capacidade para uma paciente e desinteressada interlocução com todos. O povo angolano e os laços fraternos entre angolanos e portugueses valem bem mais do que 20.000 barris de petróleo.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 2.Novembro.1997
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