Ao lado da história
Diante de um partido que se afirmou reformista e se quis ao longo das duas últimas décadas apresentar-se e crescer como protagonista da mudança, é difícil, senão impossível, entender qual o sentido estratégico do duplo distanciamento do PSD face às duas mais importantes reformas do sistema que estão na mesa: a regionalização e o novo quadro da lei eleitoral.
As consequências das tentativas de sabotagem a nível local do processo de regionalização que, desde o ano passado, foram movidas pelo PP e sobretudo pelo PSD já fizeram sentir-se, às vezes de modo patético, nalguns dos incidentes e pequenos dramas que rodearam a votação parlamentar do ansiado mapa. O pior ainda estará para vir.
Entalados entre o sentir autêntico das populações que lhes cabia representar e o interesseirismo de uma canina fidelidade partidária, ainda foram vários os autarcas pêpistas ou social-democratas que se alhearam da importância da audição das Assembleias Municipais, escolhendo o puro silêncio, ou entoando "nins" de Pilatos, ou - pior ainda - traindo a própria consciência. Na 5.ª feira passada, feito o balanço, muitos apareceram a verter sonoras lágrimas de crocodilo face às pontuais inconveniências fronteiriças do mapa por que se concluiu.Lamentável.
Tudo poderia ter-se evitado não fosse a atitude irresponsável imposta como lei de bronze pelas respectivas direcções partidárias e acompanhada por alguns servilismos inaceitáveis de mordomos locais. Só podem, por isso, lastimar-se de si próprios e das direcções dos seus próprios partidos, porque não souberam enquadrar, nem tratar com atenção na altura própria longas aspirações regionais e locais.
É sempre assim quando se abandona o rumo que foi o de sempre e se escolhe antes por estrada o caminho ao lado da história. E não surpreenderia nada que muitos desses autarcas acabassem despedidos pelas populações que tão mal serviram e recusaram representar. Esses problemas pontuais acabarão todos por resolver-se - mas talvez que só à custa desses mesmos que traíram no momento certo e se esqueceram do mandato que lhes pertencia.
Raciocinando como vulgares caciques, reduzindo-se a meros alfinetes coloridos no mapa de ocupação territorial dos directórios partidários, esses autarcas que à direita revelaram pouca consciência e menor independência acabarão dilacerados pelo dilema que lhes é típico: "de mal com a plebe por amor ao Senhor; de mal com o Senhor por amor à plebe". Já se viu como a direcção do PSD se fez atar de pés e mãos e em absoluto deixou condicionar-se duplamente quer pelo funesto testamento que Cavaco Silva rabiscou em fim de tempo nesta matéria, quer pela implacável marcação que o PP ruge à sua direita. O que conduz a que a posição adaptada pela direcção social-democrata sobre a regionalização seja particularmente inconcebível e tão prenhe de piruetas permanentes e de contradições infinitas.
Pior do que isso. Irmanado que está o PSD com o PP e posto às ordens de Manuel Monteiro, a posição de bloqueio global à direita adivinha um desastre em alternativa. Se vencessem e por absurdo o referendo viesse a ser negativo, o desastre seria para o país, condenado a penar por mais uns anos ou mesmo décadas no calvário centralista que nos tolhe os movimentos, nos entope o progresso e arrasta esquecimentos e injustiças. Se perderem como é mais provável, o desastre será para os dois partidos à direita, que levarão anos a reconstruir a confiança em muitos milhares de eleitores e em populações inteiras traídas, ignoradas, maltratadas, gozadas, de cujas causas se esqueceram, de cujos corações ficarão apartados, de cujas memórias se apagarão. Pesada responsabilidade e enorme hipoteca para o futuro que essas direcções do PP e PSD estão a contrair para os seus militantes, os seus quadros e os seus eleitores. A procissão ainda vai no adro.
Quanto ao PP, o assunto ainda consegue perceber-se. Decide e age por puro tacticismo, mais do que por qualquer convicção autêntica que tarda em revelar-se. Não surpreende num partido que definiu o seu caminho como simples partido de protesto e que, nada dando de novo, só aspira a demarcar o seu espaço por entre as contradições alheias. O PP não é de todo determinado pelo alegado "retalho do país", que abomine; mas realmente pelo directo retalho do PSD, que aprecia.
Toda a gente o sabe. O que surpreende é que o PSD se pusesse tão a jeito. E que continue.
Diante de um partido que se afirmou reformista e se quis ao longo das duas últimas décadas apresentar-se e crescer como protagonista da mudança, é difícil, senão impossível, entender qual o sentido estratégico do duplo distanciamento do PSD face às duas mais importantes reformas do sistema que estão na mesa: a regionalização e o novo quadro da lei eleitoral.
Desertando da sua própria história política, afastando-se do seu carácter, distraindo-se do futuro e esquecendo-se do que ele próprio foi promovendo, o PSD põe-se de capa diante da mudança, ao dizer não à regionalização cujos caboucos ajudou a lançar e ao silenciar por completo o debate sobre a importantíssima e longamente desejada reforma eleitoral. Se assim continuar, não passará apenas ao lado da história. Mas poderá ser a História a pô-lo de lado. Pelo menos à sua direcção. Os sinais já aí estão. Há coisas que o futuro nunca esquece. E, em política, raramente perdoa.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 12.Outubro.1997
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