Oxalá
Como rescaldo de uma visita oficial a Angola, rodeada de grande comitiva e maiores expectativas, o que se conhece sabe a pouco. Oxalá a paz se consolide de vez, a democracia tome passo livre e o desenvolvimento acelere. E oxalá venham a conhecer melhor desenvolvimento e se cumpram as cartas e os protocolos de intenções a que ficaram reduzidos muito dos propósitos transportados pela parte portuguesa. Toca ouvir Guterres falar sobre liberdade e legitimidade democráticas ao Parlamento angolano. E quase comove ver Guterres exortar três vezes sobre a paz, sobre a paz, sobre a paz, a populares angolanos. Mas uma política externa votiva é fraca linha e uma política de "oxalás" sabe a muito pouco. Sobretudo quando nos fizeram esperar mais.
O brio nacional - sempre muito sensível aos humores dos futebóis - não anda já de si famoso. Benfica, Guimarães e Boavista já tinham ido. O Porto afundou-se de vez na Noruega e o Sporting tropeçou quase sem remédio em casa. A selecção nacional - essa - fenecera sem glória, no clima já habitual do assobiar para o lado e de um eterno passa culpas. Salva-se o Braga para ir iluminando o altar dos êxitos externos.
Quando olhamos para a nossa Europa, parece que o país se tolhe de cepticismo sobre si mesmo e de angústia quanto ao futuro. Quanto a África, tardamos a acertar um rumo efectivo. O Brasil voltara entretanto à primeira linha da política, mas pouco se sente a níveis mais palpáveis. A longamente prometida e promissora CPLP - sigla horrorosa para uma bela ideia - continua engasgada. E o atlantismo parece entupido ou posto de reserva.
Anda aí de novo a sombra de uma desmoralização a insinuar-se. De Angola esperava-se mais. Foi feito esperar mais. Mas a comitiva trouxe muito pouco na bagagem. Amizade, muita amizade, mas poucos resultados práticos e imediatos. Esperança, muita esperança, mas poucas perspectivas directas e para já. Os devedores bateram o pé. Fizeram frente aos credores e nós dissemos muito obrigado, esmolando cartas de intenções. Como outrora no futebol, ganhámos moralmente. Fomos muito cumprimentados. Mas viemos derrotados.
Angola é um tema muito difícil na cultura portuguesa de hoje. Não julgo que seja má consciência, que não há a menor justificação para ela. Mas é um receio geralmente latente, um receio de ferir susceptibilidades nos círculos dirigentes do Estado angolano e de comprometer oportunidades actuais ou futuras. Da esquerda à direita, Angola continua a ocupar um lugar especial no coração das gerações portuguesas que ainda preponderam. Angola tocou a vida de milhões de portugueses, como quase nada mais dessa forma.
Portugal amou e ama Angola como pouco na sua História. Amou e ama demais. Tem uma quase insuperável dificuldade em ser lúcido e objectivo a respeito de Angola.
Angola parte-nos violentamente o coração, quando vemos imagens de mortos e estropiados, de miséria e destruição, filhos perdidos de uma guerra a perder de vista. É como se fosse aqui. Quando Diana de Gales fez de Angola o centro da sua campanha contra as minas antipessoais, essas imagens doeram como pouco. Toda a gente sabe - mas ver dói. Quando Diana de Gales foi de seguida à Bósnia, o quadro era o mesmo, mas a dor não. Angola, ao lado de Timor-Leste-Lorosae, permanece uma chaga da descolonização. Uma chaga que não cicatrizou por inteiro e que, como úlcera, se abre e reabre a espasmos na alma portuguesa. Isso tolhe-nos a lucidez, a independência, o critério. Vemos mais o que gostávamos que fosse, porque nos recusamos a ver o que é.
Bicesse e a sua frustração ainda pesam. Todos querem acreditar de novo, mas ficam pecos diante de factos mais sombrios e das intermitentes ameaças de que a violência poderá voltar. Num qualquer minuto louco, como da última vez.
Quanto a Angola, queremos muito, mas sabemos pouco. O que realmente se passou, por exemplo, com as trapalhadas que rodearam o incrível bloqueio à visita da delegação parlamentar do PP ainda é tudo menos claro. Quanto a Angola, sonhamos muito, mas queremos saber pouco. Às vezes Miguel Sousa Tavares zurze por aqui violentamente o clima absurdo de corrupção e de arbítrio que continuamente nos chega das histórias de Luanda. Às vezes Miguel Sousa Tavares retrata, palavras duras, a repartição oligárquica do saque sobre as cabeças, os corpos e as almas de um povo irmão martirizado, que é o que tantas vezes mais parece dividir realmente os aparelhos do MPLA e da UNITA e os seus "senhores da guerra". Chega a denunciar que, provavelmente, sem querermos, andamos a alimentar isso mesmo. Mas as palavras dele ficam sós - com razão, mas sós. Não queremos saber. Preferimos não conhecer. O sonho é mais romântico e sempre muito bonito. A verdade magoa e dói. A verdade acorda e estraga . Dói muito e magoa demais. Atrapalha. Sobretudo "pode ofender" - não convém.
Se calhar, ao contrário, já chega de "oxalás". Talvez seja tempo de conhecermos tudo, de descermos à terra e de verificarmos, ponto por ponto, a realidade. Qual o ponto efectivo das relações luso-angolanas? De quanto é a dívida do Estado de Angola a Portugal e qual a sua previsível evolução? Que expectativas reais existem quanto ao processo de paz em Angola e à consolidação democrática? Será que a "segunda volta das presidenciais" entre José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi está para realizar-se ainda, lá para o ano 2010, permanecendo um no Futungo e outro no Andulo? Lusaca é para valer? O sistema, as autoridades e as partes ainda armadas são fiáveis, funcionam? O sistema, as autoridades e as partes ainda armadas também querem primacialmente o bem dos angolanos, ao menos tanto como nós próprios platonicamente? Que ideia há? Que observação é feita? Que perspectivas e que visão real?
Depois de nos informarem plenamente, sem rodeios, nem suaves diplomacias de "cocktail", decidiríamos. Os angolanos, que é o que mais importa, eram capazes de ganhar mais com isso do que com este contínuo chá de rosas. E nós também. A verdade, às vezes, cura.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 26.Outubro.1997
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