O autarca da bola

Não pode ser. O partidarismo e o poder não podem estar no desporto, distorcendo-o com as suas influências. O clubismo e a indústria ou o comércio desportivos não podem manchar a política, desviando-a dos estritos interesses gerais. 

Há coisas em que não se acredita. Depois de anos e anos a detectar, a analisar e a condenar os malefícios da promiscuidade entre a política e o futebol, uma lei muito recente, já em 1997, renova, insiste e estabelece a linha directa da misturada. 

É a lei das sociedades desportivas. Aí vem dito que os municípios, tal como as regiões autónomas ou as associações de municípios, podem participar no capital das sociedades desportivas da respectiva área. E o absurdo legal é tão grande que, enquanto a participação dos clubes é limitada a 40 por cento, a participação dos dinheiros públicos através das câmaras ou dos executivos regionais pode ascender a 50 por cento. 

Extraordinário! 

De acordo com o iluminado legislador, o presidente de uma câmara ou de um governo regional pode ter mais peso e mais responsabilidades na condução do futebol de um determinado clube do que o presidente do clube propriamente dito... Não pode ser. 

Não é só esta barbaridade que não pode ser. Não é só a completa inversão das relações de capital que não pode ser. É a própria simples presença de dinheiros públicos, feitos capitalistas, esta presença promíscua de dinheiros políticos no futebol ou noutras actividades desportivas profissionais organizadas em sociedade que não pode ser tolerada. Tem de ser banida de vez. Este preceito da lei tem de ser revogado. O mais depressa possível.

O legislador deixou-se talvez impressionar pela seguinte ideia e argumento: os clubes são pólos importantes da vida regional e local; catalisam os sentimentos da terra, os seus brios e orgulho, o seu pulsar e as suas emoções; projectam de modo marcante a imagem de uma cidade, de uma vila ou de uma região a nível nacional e internacional. Donde, nada mais natural - pensou o esclarecido legislador - do que franquear, escancarar a porta à presença directa de capitais públicos, municipais ou regionais, na estrutura da sociedade desportiva.

Até porque - pensam mesmo alguns - isso seria modo de "equilibrar o jogo" entre as regiões mais ricas e as de iniciativa empresarial mais débil. Os autarcas e os preclaros governos regionais substituir-se-iam à inércia ou maior debilidade económica das respectivas comunidades.

Nada de mais errado. Se a primeira asserção é correcta quanto ao lugar que os clubes ocupam na dinâmica da vida local e regional, devem ser os próprios clubes - não os municípios, nem regiões autónomas - a polarizar essa dinamização e, caso optem por sociedades desportivas, a congregar e capitalizar directamente novos recursos de cidadãos ou de outros investidores. E, se os municípios e as regiões autónomas vêem com bons olhos essa evolução e acompanham com atenção o seu desenvolvimento desportivo e institucional, não devem fazer mais do que ajudar à sensibilização de terceiros para o interesse que a mesma representa no conjunto do universo local ou regional considerado. Passar além deste limite é, em si mesmo, a vários títulos perverso.

Quanto à segunda asserção, é a que põe mais claramente a nu o verdadeiro risco para as finanças públicas que é representado pelo envolvimento directo dos orçamentos e dos capitais municipais nos assuntos da bola. Cada um é livre de achar que esse risco de ruína sucessiva, intermitente ou recorrente, será maior ou menor, que é limitado ou que estará balizado.

Não vale a pena gastarmo-nos a discutir o grau - a questão é absoluta e de princípio.

Haverá sempre aí, seja qual for o grau, um desperdício perfeitamente injustificável. Não há uma só razão seriamente considerável para justificar o comprometimento do dinheiro de todos na actividade de alguns. Não há um só argumento sólido que possa fundamentar o recurso a dinheiro dos contribuintes na compra de jogadores, na contratação de treinadores ou na infinidade de relações comerciais multifacetadas que marcam o mundo do desporto profissional de alta competição nos dias de hoje. E, conhecida a vertigem e a voragem de algumas destas relações e dos seus números, os riscos para a colectividade em geral são muito claros.

Aliás, há outras razões. Razões principais. Por exemplo: a razão objectiva por que, no desporto profissional moderno, é boa a possível convocação, em subscrição pública ou particular, de recursos de investidores para o universo de um clube, através e no quadro de uma relação societária, corresponde a uma coincidência de interesse objectivo entre o espírito tradicional dos associados e o espírito dos novos investidores, muitas vezes também associados - entre a melhor ambição de uns (o sucesso desportivo) e a melhor ambição de outros (o sucesso desportivo e empresarial), que vão de par. E corresponde sobretudo à convicção quer da inevitabilidade, quer do sentido positivo da presença, adentro do universo institucional do clube, de recursos financeiros novos que acrescentam uma componente preciosa de exigência, de rigor, de transparência, de profissionalismo, de competência de gestão, de rendibilidade, isto é, de equilíbrio nas contas e de êxito na actividade. Porquê? Porque esses dinheiros novos, de sócios, simpatizantes ou adeptos, provêm do mercado e das suas relações competitivas comuns. Ora, nada disto acontece com os dinheiros públicos. Onde os dinheiros privados são dinheiros ganhos fruto de trabalho, de êxito e de competência, estes serão mero fruto fácil de desperdícios públicos. Onde aqueles são expressão de identificada ou criteriosa aplicação de poupanças individuais ou familiares, estes serão filhos do mero compadrio ou interesseirismo politiqueiro. Onde aqueles resultam sempre de esforço, estes são afilhados da facilidade. Os primeiros porão sempre pressão no sentido do rigor e da estrita competência. Os segundos, quando misturados onde não pertencem, potenciam e enriquecem o regabofe.

Aliás, é sabido e não pode ser tolerado que a misturada, apromiscuidade, as intermináveis cumplicidades entre política e desporto são sempre, ao mesmo tempo, factor de corrupção no desporto e factor de corrupção na política. Comprometem a liberdade, a lealdade e a independência de um. Ensandecem, inebriam, cegam os critérios da outra. Não pode ser. O partidarismo e o poder não podem estar no desporto, distorcendo-o com as suas influências. O clubismo e a indústria ou o comércio desportivos não podem manchar a política, desviando-a dos estritos interesses gerais.

Os clubes são da sociedade civil. Na sociedade civil - apenas - devem continuar.

Política fora do desporto, já! Dinheiros municipais ou regionais nas sociedades desportivas, não obrigado.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 9.Novembro.1997

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