A ressaca e o resto
O que impressiona no actual Governo e na maioria é justamente a sua vulnerabilidade persistente, apesar de o clima geral lhe ir de feição, nomeadamente no plano económico e em zonas de indiscutível sucesso. Falta ali qualquer coisa. Falta grude. Falta alma ou sentido profundo que se sinta.
Logo à noite, já se vai saber. Há uns anos, Pacheco Pereira dizia que a vitória numas eleições autárquicas se decidia na noite das eleições na televisão. É uma visão típica de estado-maior e de percepção do poder mediático.
As coisas não são assim tão certas e tão lineares.
No terreno, concelho a concelho, freguesia a freguesia, ganha quem efectivamente ganhar. São esses que mais próximos ficarão e que gerirão - para o bem e para o mal - os destinos do cidadão nos quatro anos que se seguem. O ruído mediático geral e o tom televisivo da noite pouco ou nenhum efeito terão nesse plano efectivamente real e efectivamente duradouro nas nossas vidas.
E, mesmo ao nível político geral, das ondas e das grandes marés, das interpretações e das análises por grosso, estou longe hoje de estar tão seguro quanto já estive de que uma leitura imediata da mancha dos resultados autárquicos tenha efeitos necessariamente tão marcantes. Ou melhor, esses efeitos tocarão por certo as relações internas dentro de cada partido - haverá, dentro de cada um, os novos "vencedores" e os novos "derrotados". Mas poderão tocar muito pouco o sentido futuro da evolução política geral, por mais sonantes e definitivas que sejam as leituras imediatas das autárquicas.
A sensação arrastada que se vai tendo, no plano nacional, é a de falta de uma alternativa.
Essa é a maior debilidade das oposições. Essa é também a maior barreira de segurança do Governo e da maioria. Um pouco à semelhança do que se comentava no "cavaquismo".
Para as oposições, é um problema a resolver. Mas para o Governo também é um problema.
O Governo e a maioria têm-se resguardado excessivamente no sentimento de falta de alternativa. Isso é escasso consolo. Porque faz depender a segurança própria não tanto da adesão consciente e identificada dos apoiantes, mas sobretudo de debilidades alheias e de factores externos que podem mudar num segundo.
A falta de alternativa estimula o comodismo e a fragilidade do sentido crítico. Anestesia, adormece, amolece. Facilita demasiado e dá uma aparência de que, numa qualquer curva da estrada mais adiante, pode esfumar-se num instante. Sem regresso.
Uma estabilidade política baseada fundamentalmente na falta de alternativa ou de alternativas é passível de abanar e de se abalar a sopros inesperados e chocalha a qualquer tropeço de ocasião.
As eleições autárquicas em nada irão alterar isto, por maior que seja o suplemento de alma e de fôlego que dos seus resultados possa vir a transparecer no imediato.
O que, neste plano, impressiona no actual Governo e na maioria é justamente a sua vulnerabilidade persistente, apesar de o clima geral lhe ir de feição, nomeadamente no plano económico e em zonas de indiscutível sucesso.
Falta ali qualquer coisa. Falta grude. Falta alma ou sentido profundo que se sinta. Não sei se será por escassa protagonização de convicções. Não sei se será a prevalência, tão à moda, de conceitos de "gestão" ou de "pragmatismo" sobre ideias fortes como "projecto" ou "reforma". Mas falta ali qualquer coisa.
A falta de jeito, para dizer o mínimo, na condução de um "dossier" como o da regionalização é talvez dos sinais mais arrastados e reveladores. Mas não o único. E, ainda recentemente, a forma como se concretizou a remodelação ministerial e o tom geral dos comentários que desencadeou - sobretudo na área socialista - são outro sintoma de uma aparência de pedra feita, afinal, de areia.
A campanha para as eleições autárquicas interrompeu essa percepção pública. Os resultados de logo à noite poderão servir para recarburar a máquina e repintar de pedra a fachada. Mas, por mais sonoros que sejam os "vivas" - poderão não o ser -, será sempre sol de pouca dura se as questões de fundo da dinâmica da maioria não forem revistas e assentes em mais sólidos alicerces.
Dentro dos partidos é que os efeitos poderão ser mais efectivos, sobretudo nos mais abertos e expostos à intervenção directa da opinião pública - isto é, com a clássica excepção do PCP/CDU.
Os movimentos internos alastrarão inevitavelmente a partir de posições conquistadas ou perdidas no terreno. Penetrarão e percorrerão os aparelhos. Concelhia a concelhia, distrital a distrital e até directamente na perspectiva dos próximos congressos partidários, processar-se-ão inevitáveis ajustamentos, senão mesmo realinhamentos e recolocações.
Tensões em hibernação poderão despertar de novo. "Derrotados" de ontem poderão perfilar-se de novo. E "vencedores" que estavam poderão afundar-se.
Essa leitura é que será mais interessante. Até porque irá determinar a resposta à outra questão: há ou não há alternativa? Qual? Há ou não há convicções e projecto? Quais e como? É da resposta que for dada a esta questão nos próximos meses, dentro das oposições como dentro da maioria, que irá depender o sentido político do país e as suas escolhas decisivas para depois da moeda única.
Não tanto apenas de hoje à noite. Até porque, se as oposições - mesmo se perdendo - se refrescarem e a maioria - qual mesmo se ganhando - ampliar a bananeira à sombra da é tão bom dormir, a história seguinte poderá sempre vir a escrever-se exactamente ao contrário do que logo à noite pareça.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 14.Dezembro.1997
Comentários
Enviar um comentário