Localidades

Apesar da vasta cobertura que as eleições autárquicas têm merecido por parte da comunicação social, há a sensação mole de que não despertam decisivo interesse dos cidadãos. O sentimento não será absolutamente generalizado, uma vez que as eleições são exactamente locais e há casos de excepção que confirmam a regra de desinteresse geral. 

Para mais, quanto à mais saliente nota habitual de picante à volta das autárquicas - os seus efeitos conexos sobre o quadro político nacional, em cartões amarelos ou vermelhos à maioria que está -, tudo indica que desta feita não irá ocorrer de todo. Antes pelo contrário, os indicadores são num sentido geral de consolidação da base de Guterres e de quebras do PSD, o principal partido da oposição. Daí, a sensação latente de bocejo. 

Por sinal, uma das mais relevantes excepções a este cinzento tom geral, confirma a mesma constipação habitual das autárquicas pelo postigo das questões políticas gerais. É o caso da Figueira da Foz, onde a ousadia de Santana Lopes parece ir pagar com largos dividendos, trazendo para a ribalta uma cidade muito esquecida e repondo o protagonista na primeira fila do debate interno no PSD e da política nacional. 

Esta visão persistente das eleições locais denuncia um dos vícios e debilidades maiores do actual sistema político-partidário: a completa ausência de opiniões públicas locais. Com as raríssimas excepções de alguma bronca pontual, tudo se passa em Portugal como se a administração local não tivesse a menor importância na vida do cidadão ou ocupasse aqui o mais irrelevante dos lugares. Falar de localidades é como se se tratasse de banalidades. A ideia que passa é que, de um modo geral, as populações pouco ou nada se interessam, pouco ou nada discutem sobre o que se passa nas suas terras. 

De quatro em quatro anos, com as eleições à porta o ambiente agita-se e anima-se. Mas tudo soa um bocadinho a oco e a falso, ao modo de quem deita à pressa algum bicarbonato sobre um arrastado marasmo. 

A sensação é, aliás, falsa. A vida real, concreta, efectiva dos cidadãos é marcada no mais alto grau por decisões tomadas ou a tomar pela administração local autárquica; e é igualmente marcada em altíssima medida por aqueles patamares regionais da administração central, hoje meramente desconcentrados, que, por corredores escondidos e ignotos labirintos, tudo vão informando, condicionando e decidindo, com pouco ou nenhum grau de conhecimento e de participação do público-alvo. 

Mas a sensação é assim e as realidades são o que são. Essa distracção do cidadão comum sobre os problemas locais e regionais quem a paga é o próprio cidadão comum. Nós. 

Dois factores contribuem de forma marcante para este estado de coisas: o sistema eleitoral e a não-regionalização, peças de um mesmo ordenamento político fortemente centralizado e sofrendo de aguda governo-dependência. 

A questão emerge da dinâmica real das concelhias e distritais dos partidos. As concelhias pouco existem e raramente se notam; e as distritais são mais estruturas de ocupação e gestão territorial do poder do que fóruns de debate contínuo da temática própria das suas regiões. O que domina, aliás, é, que, quando se movimentam intensamente e delas se ouve falar, é porque estão em causa questões ou equilíbrios da política nacional: agem como trintanários de ministros, efectivos ou candidatos; fautores de listas para os batalhões do chefe e dos directórios; alfobres de "boys" para os vários 'Jobs"que as circunstâncias variáveis vão oferecendo a cada cor política; ou meras câmaras de eco, em aplauso ou em protesto, sobre as grandes medidas ou contra os enormes disparates no plano nacional. Das suas terras, dos seus concelhos, das suas regiões, bem como dos respectivos problemas, necessidades, oportunidades e estratégias próprias de desenvolvimento, pouco ou nada se ocupam realmente. 

Por isso, quando chegam as eleições autárquicas tudo soa bastante a falsete. A dinâmica do fabrico das listas autárquicas é, aliás, toda ela, quase sempre viciada. Não traduz, as mais das vezes, qualquer sequência de um trabalho político anterior, continuado, coerente e consistente. Na maior parte dos casos, os partidos ou defendem as posições conquistadas nas eleições anteriores, ou andam à cata de alguma figura que faculte um brilharete pontual ou que limite as perdas ao partido nacional, tudo oferecendo no banquete global do chefe máximo. Muitas candidaturas são vistas, aliás, como meros "punaises" no mapa territorial de cada partido e meras parcelas da sua contagem nacional o caso actual do PP é o mais flagrante, mas todos sofrem do mesmo tique. 

O processo das candidaturas locais tem ainda incríveis semelhanças com o que se passava nos tempos da defunta União Nacional. Uns cavalheiros influentes e atentos (as concelhias) que se agitam de quatro em quatro anos, não pelo debate e resolução dos problemas das suas terras, mas à cata de uns quantos figurões e demais figurinhas para apresentarem ao baralho dos excelentíssimos governadores civis (as distritais) e para serviço final na bandeja de sua excelência o ministro do Interior (o directório nacional). Em rosa, laranja, azul ou vermelho, ainda soa por aí o eco reverente e prestável do velho governador bracarense, Santos da Cunha: "O 'bibinha' de bossa excelência vem já a seguir." As diferenças? Apenas duas: a de que agora sempre há eleições; e a de que são quatro, em vez de uma, as "uniões nacionais". E capaz de já não ser mau de todo; mas é definitivamente pouco. 

Falta autenticidade a tudo isto. Falta continuidade e falta consciência. Como fazê-lo? Reformar o sistema eleitoral e regionalizar a administração. Isto é, acordar as anestesiadas e distraídas opiniões públicas regionais e locais; colocal as temáticas regionais e locais efectivamente no centro permanente do debate público relevante. 

Bem sei que está difícil. Mas isso é sempre pela mesma razão'. como são fortes em Portugal a cultura e a tradição do senhor ministro do Interior... Como é duro e difícil perder ou ter que partilhar realmente o poder. Sobretudo para as elites mal habituadas. 


P.S. Parece ter surgido um gravíssimo problema entre a Lusoponte e o Governo: quem paga-a inauguração (?!) da nova ponte sobre o Tejo? A pomposa brincadeira, segundo consta, pode custar a barateza de 200 mil contos - para mais que não para menos, pois em Portugal já se sabe que os orçamentos são sempre "a modos que". Olha que grande problema! O "problema" é em si mesmo um escândalo. A solução é ninguém pagar e não haver festa de todo. Abre-se a ponte ao trânsito e...já está. A ponte é uma necessidade - a festa, não! Além de que os louros, aqui, na memória colectiva, irão inteirinhos ainda para Cavaco e Ferreira do Amaral. Honra seja a cada um. É bom não esquecer. E ser modesto. 


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 1.Dezembro.1997

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