O preço do café


O PP, totalmente condicionado por Monteiro e os seus próximos, escolheu a via de uma fortaleza segura, embevecido com o mediatismo que vinha granjeando, desconfiado de quaisquer novos ou de antigos regresso, murado numa corte de fidelidades grupais. Foi estrangulando o diálogo interno, tapou referências externas e gerou crises sucessivas. No domingo passado, perdeu. 

Quando no penúltimo Congresso do PP, Manuel Monteiro se descompôs de repente, deu um murro na mesa e saiu para tomar o célebre café, rasgou para o seu partido o destino que se cumpriu nas eleições autárquicas de domingo. 

Essa "bica" não foi de borla. Custou o completo esfriamento da dinâmica que lhe vinha das últimas legislativas. Estreitou a capacidade agregadora da direcção do partido. Antecipou a crise fratricida que se seguiria no grupo parlamentar. Eliminou quaisquer possibilidades sérias de rejuvenescimento do aparelho e de alargamento de quadros. 

Lançou o PP de regresso ao limiar mínimo de onde partira. Definiu a rota que terminaria, segundo a análise unânime dos comentadores, nas piores autárquicas de sempre, fosse do CDS, fosse do PP. Ah! Maldita cafeína!...

O que se mediu nestas eleições foi o "grupo do Altis". Não tanto o grupo propriamente dito, porque, ao que parece, já nem será tão coeso quanto isso, esfumando-se na voragem implacável do tempo. Mas o espírito do "grupo", o espírito do funil, o espírito estreito do suserano e seus guerreiros imediatos.

O PP, nesse congresso decisivo para o seu futuro imediato, tinha duas ideias diante de si: a ideia de crescer e alargar-se, reunindo-se e ampliando-se em campo aberto; e a ideia de que mais valia continuar uma frágil e solitária tribuna fortificada para eco do líder e glória mediática da sua constante voz protestatária. O PP, totalmente condicionado por Monteiro e os seus próximos mais imediatos, preferiu esta via a seguir ao café.

Escolheu a via de uma fortaleza segura, embevecido com o mediatismo que vinha granjeando, desconfiado de quaisquer novos ou de antigos regressos, murado numa corte de fidelidades grupais. Enganou-se. Estagnou. Foi estrangulando o diálogo interno, tapou referências externas e gerou crises sucessivas. No domingo passado, perdeu. Cumpriu-se o ciclo. Tudo por causa daquele cafezinho.

No antigo CDS, a crise acabou por ser a da velha fábula da rã e do boi. Ou seria uma vaca? Não sei. Já não me lembro bem. Sei que o CDS cumpriu o papel da rã.

O CDS era um partido diferente do PPD na sua natureza profunda. Corriam ambos no mesmo espaço, mas faziam apelo a modelos distintos. O CDS era um partido de doutrina. A sua prática política arrancava de um corpo fundamental de ideias, humanistas e personalistas, plasmado na Declaração de Princípios e que, sob a orientação de Freitas do Amaral e de Amaro da Costa, ia encontrando traduções sucessivas a nível programático ou na estratégia e nas tácticas de intervenção política. A classe dirigente tinha um elevado grau de identidade doutrinária e o aparelho, sempre débil, mas seguro, prezava essa segurança, esse lastro. A vida não correu mal, aliás, a um tal projecto.

Às tantas, porém, apossou-se da "angústia dos 16 por cento". Muitos achavam que era pouco e, olhando para o PPD/PSD vizinho - o boi -, mordiam-se de inveja, aspirando a ser iguais e maiores.

Feito rã na mira de inchar, o CDS acreditou, sob a bandeira de Lucas Pires e do seu "nacionalismo liberal", que era tempo de abandonar as "limitativas" referências doutrinárias características e de copiar o modelo do "catch-all-party" que era o do PPD/PSD. Foi o tempo da amálgama indiferenciada dos "democratas-cristãos, conservadores e liberais" e outros que tais. O que viesse à rede servia. Acreditava-se que assim ia crescer, porque ia somar.

Foi exactamente ao contrário. Destruídas as referências fundamentais, fracturou-se de subtracção em subtracção e, no eleitorado, entre a cópia (o CDS) e o original (o PPD/PSD) de um partido de direita, pragmático, apanha-todos, a maioria foi-se embora e preferiu o original. Em vez de inchar, o CDS explodiu exactamente como a rã. Os bocados dispersaram-se por várias partes. Uns, avulsos, como eu. Outros mais longe. E muitos acabaram até colados e integrados no boi vizinho - por sinal, os maiores generais da desastrada empresa de "enchimento".

No jovem PP, o "erro da rã" tem sido substituído pelo "erro de Godot". O PP é o herdeiro directo de uma corrente que já existia no CDS e que se escandalizava - em murmúrio primeiro, aos berros depois - com o discurso centrista do partido. O CDS, dizia-se, "tem que se assumir como um partido de direita".

O curioso é que o CDS sempre foi, na consciência do povo e no desenho dos analistas, um partido de direita. Mesmo nos tempos do "rigorosamente ao centro". Tal como, aliás, o seu vizinho PPD/PSD. Julgo que ninguém, alguma vez, teve sérias dúvidas sobre isso.

A direita de que, então, se falava e que começou exactamente pelos principais arautos da fase da rã, era uma outra direita. Não se tratava de mera geografia ou geometria partidária. Mas de "a Direita", com D maiúsculo, senhora de porte austero, voz troante e pose solene, aquela que a si mesma se considera única verdadeira e única legítima, olhando com desdém para todos os outros primos ou irmãos, que considera "arranjistas", "orleanistas" ou "complexados", para usar apenas os adjectivos de salão. 

O problema dessa direita é, em parte, o de Godot - não existe, não vem, nunca chega.

Imagina-se, espera-se, mas não está. E, na outra parte, o problema dessa direita redentora é o de que há tantos grupúsculos com tal convicção de si mesmos que escolher uma tal via é um passaporte garantido para a cizânia permanente.

O PP deixou-se, porque quis, atravessar por todas essas antiquíssimas "guerras civis" da direita que se preza autêntica - mesmo quando, perante a sua dimensão, as guerras civis se assemelham a cotoveladas de quiosque ou brigas de bairro popular, com chinelos e panelas a voar, ao modo do Pátio das Cantigas. 

Pior do que isso. Ao desistir de um corpo de doutrina estável e referencial, credível e moderado, ao renunciar a um carácter próprio e à ampliação leal e aberta dos seus quadros, ao fugir do centro competitivo para as margens fortificadas, ao ceder ao mero discurso fácil do protesto e à tentação mágica do aceno à tal "direita" dita pura e única, o jovem PP caiu no maior erro que o antigo CDS sempre conheceu e sempre evitou, enquanto o foi: ser mero instrumento fácil de manipulação permanente pela direita inorgânica que anda por aí na sociedade, ao serviço do boi vizinho, PPD/PSD.

E que essa direita ou essas direitas, ainda por cima, votam quase sempre no PSD. Não pertencem - usam. Foi sempre assim e sempre assim será. Dá-lhes jeito um partido de flanco. Um partido marginal. Um partido que ponha os pontos de exclamação no texto que vão escrevendo. Um partido que represente o excesso daquilo de que querem parecer a moderação. Um partido que diga o que não querem dizer, para melhor se aconchegarem depois no remanso central, onde efectivamente o campeonato se joga e se decide.

Aplaudem as manchetes, endeusam o tribuno, gostam do teatro. Mas na altura de escolher... nunca estão lá. Antes ao lado. Porque a vida é assim.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 24.Dezembro.1997

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