O desafio personalista
Na longa e agitada história do CDS, houve um entre todos os congressos que mais me marcou. Foi o II Congresso, em 1976, em Lisboa, no antigo cinema Alvalade. O seu lema era fonte de um programa político inesgotável: "Pelo personalismo cristão: um compromisso popular e europeu."
Foi talvez o tempo mais fecundo e mais promissor de toda a história do CDS. Saído das refregas da revolução, nos primeiros passos do regime democrático, o CDS estabilizava-se naquele que foi o seu patamar mais alto e mais auspicioso: 16 por cento. Foi o congresso com que me identifiquei com mais alegria e entusiasmo e aquele por que mais se identificou e balizou o inconfundível cunho doutrinário deste partido. Foi também aquele que mais teve a marca de um grande amigo: Adelino Amaro da Costa. Depois houve mais outro: o III Congresso, em 1978, no Porto. Em 1980, Camarate levou-o.
O que o CDS teve e o que o CDS/PP mantém de mais precioso é esse registo, esse capital, esse lastro - um partido de doutrina. Doutrina mais que ideologia. A ideologia procura adivinhar o futuro. É fácil presa da tentação de construção do "homem novo", seja isso o que for, em vários matizes à esquerda ou à direita. Resvala facilmente para o atropelo extremista e totalítário, à esquerda ou à direita. A história violenta do século XX foi nisso fértil, com cascatas de guerras civis ideológicas por todo o mundo.
No CDS, ter-se doutrina era diferente. Fazia mesmo toda a diferença. Ainda por cima porque personalísta. O personalismo, designado assim tão-só, ou como "personalismo cristão", ou como "personalismo comunitário", era a corrente que, ao mesmo tempo, atravessava a renovação do movimento democrata-cristão por toda a Europa.
A singularidade do partido, nas fases melhores ou piores, sempre assentou nisso. Uma doutrina. Um pensamento. Uma perspectiva. Nunca uma simples oportunidade.
O CDS, ou o PP, ou o CDS/PP - como se preferir - é um partido com BI, um partido com bilhete de identidade, um partido com identidade. Foi melhor sempre que isso esteve mais claro. Foi pior quando pareceu mais escondido ou esquecido, ou mesmo enevoado por outras guerras ou ambições, guerrilhas ou meros protestos.
Pasmo, por isso, ao ler nalguma imprensa, no que me parece ser mais intriga interna do que análise séria, que a vitória de uma ou outra lista no congresso do CDS/PP em Braga poderá corresponder a ser-se, ou não, "uma prótese do PSD". Seria o caso de Paulo Portas.
O CDS pode ser ou não ser de todo. Pode acabar. Pode deixar de existir. Como tudo. Mas, enquanto existir, o CDS nunca será isso. É daquelas coisas que releva da absoluta impossibilidade congénita. O CDS/PP, por exemplo, quando parte para referendos, nunca é para omitir, disfarçar ou esconder a falta de ideias próprias. Nem para evitar o seu debate e clarificação. Antes para as afirmar e defender noutro terreno. Ainda quando os militantes se dividiram ou se dividem sobre a resposta seja a reformas concretas, seja a questões de princípio, nunca, em qualquer fase da sua vida, o CDS se escondeu por detrás da forma ou de meros artifícios para evitar posição geral e clara sobre a questão de fundo.
A relação entre o CDS e o PSD - ou o CDS/PP e o PPD/PSD, como se preferir - é geneticamente de tal sorte que um risco "protésico" nunca existe. A relação entre o CDS e o PSD foi sempre mais uma relação de rivalidade. Não são inimigos, nem sequer propriamente adversários - mais exactamente rivais, porque concorrem quase que justapostos no mesmo espaço, sendo modelos de partido diferentes.
O modelo do CDS é de um partido de doutrina. O do PSD o de um partido de oportunidade. Em qualquer questão, em qualquer assunto. Nos seus melhores dias, em 1978, Lucas Pires disse-o na Assembleia da República de uma forma lapidar nos tempos pré-AD: "O CDS põe a mobília, o PSD traz os 'bibelots' ." Uma visão CDS, garbosa - é claro.
Por isso é que, entre o CDS e o PSD, seja a nível local, seja nacional, houve sempre esta coisa certamente difícil e complicada de gerir, mas que só é estranha e contraditória para quem não percebeu e não percebe: dois partidos que lutam ao mesmo tempo por estar separados e por estar juntos; dois partidos que entre si assinalam e prezam a diferença, mas que tecem pelo país e pela comunidade a coincidência ou mesmo a aliança.
Em Braga, joga-se neste fim-de-semana uma vez mais uma encruzilhada decisiva: não seguramente tudo, mas muito do futuro do CDS/PP. Contam-me que há dias, numa rádio, Basílio Horta terá dito sobre este congresso do CDS/PP: "Ou será o último, ou será o primeiro." Não estou exactamente de acordo com a expressão assim lida à letra e citada fora de contexto. Nem sei se a citei bem. Mas julgo compreender o que Basílio Horta quis dizer e creio que é uma imagem feliz.
O discurso personalista - que é, para mim, o verdadeiro eixo moral do partido e a mola e alavanca da sua possível consolidação e crescimento - tem ainda todo o caminho por fazer. De há muito que o personalismo representa, para mim, na evolução que compreendo na história das ideias políticas, o caminho do futuro não só em Portugal, mas seguramente também na Europa e até talvez no mundo. Não é difícil ler isso na história do século XX, nem muito complicado compreender como e porquê. Os últimos 20 anos que passaram apenas o tornaram mais necessário, nuclear e urgente. Só falta corporizar e prosseguir.
Nas moções em debate em Braga, há uma que é por isso música para os meus ouvidos. A moção "Voltar a crescer" de Luís Nobre Guedes. Cito o excerto que mais me tocou: "O novo personalismo (...) corresponde a uma defesa da pessoa, da sua identidade e dignidade, num mundo progressivamente globalizado e massificado. (...) A resposta personalista há-de procurar encontrar uma nova posição do cidadão, nessa democracia sem sede conhecida; da família, nessa globalização dos costumes; e da pessoa, nessa sociedade tendencialmente agressiva e anónima."
Este é um tempo geral em que se regressa ao discurso dos valores. É fácil perceber porquê. O discurso dos valores é o único discurso que vale.
Em política, é sempre frágil assentar os compromissos ou as esperanças em programas. Programas leva-os o vento ou atropelam-nos as circunstâncias. Que ninguém comanda. Por que ninguém alguma vez acaba por responder.
Em política, é sempre melhor assentar compromissos ou esperanças em doutrinas, pensamento e carácter. Daí é que saem, depois, respostas consistentes e articuladas, lastro real de acção política continuada, força construtiva e referencial agregador, capacidade e fermento de crescimento, raiz e caminho de futuro.
Se, em Braga, o abraço for grande, a estrada por diante será comprida.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 22.Março.1998
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