O socorro do "pai fundador"


A pequena entrevista concedida aqui, há dias, à jornalista Teresa de Sousa por Mário Soares é um facto da maior importância. Responde a um pequeno, mas incisivo, comentário de Vítor Cunha Rego contra a possibilidade de um líder socialista católico e inicia a reposição de alguma ordem global nas hostes socialistas, depois da geral desordem provocada pelas iniciativas da JS e a "querela insensata" - Soares dixit - que abriram ou destaparam.

É um verdadeiro gesto de socorro do pai fundador do PS. Um gesto de socorro não tanto a Guterres, que não precisaria disso e aparenta "estar-se nas tintas" - e bem - para as ondas de policiamento das consciências movidas por alguns camaradas, ou ditos que tal. Mas um gesto vigoroso de socorro ao próprio PS, que Mário Soares fundou e a que deu a matriz e tanto do seu carácter, aberto, democrático e plural.

Querela antiga, esta, e sempre latente. No seu passado de militante socialista, Guterres chegou a ser acusado de "ser da Opus Dei". O que, para os tolos do costume, é um pouco a mesma coisa do que "ir à missa", mas pecado maior - e, esse, verdadeiramente intolerável - do que apenas "ir à missa". Ir à missa, até mesmo a procissões, ainda pode ser, porque é giro e folclórico. "Mais" do que isso é que já não pode ser. Põe em causa a suprema ordem ideológica e o comando unitário do que está "cientificamente" admitido como certo ou proscrito como errado.

A "querela insensata" emerge, aliás, de uma série interminável de tolices mentais.

O detonador foi a questão do aborto, dentro do quadro geral de uma mais vasta ofensiva da liderança da JS pela "reforma dos costumes". Parte de um erro de raiz, muito comum: quem é contra a liberalização do aborto é porque é católico. E segue por aí adiante em frenético galope da asneira e do preconceito: é católico, fala "como a Igreja manda", obedece "aos padres". Assim se chega aos ecos murmurados dos "mata-frades", que marcaram a I República em Portugal e foram adubo sangrento da Guerra Civil espanhola. Foi exactamente isto, embora num tom aggiornatto, que se ouviu pelos corredores e biombos do PS - por sinal, não tanto agora; de forma mais nítida ainda aquando da votação anterior da lei do aborto, que a JS perdera.

Fosse a caricatura livre no PS e talvez representassem também Guterres de hábito franciscano ou de sotaina diocesana vestido e preservativo no nariz. A amizade com Vítor Melícias, essa então, faz de Guterres verdadeiramente "um suspeito". Perigoso. Perigosíssimo.

A tanto chegaria a intolerância larvar, com Guterres apenas protegido e blindado pela sua condição de líder e primeiro-ministro. Uma espécie de excelentíssima imunidade particular: "Perseguir-se-ão todos os católicos, excepto os que forem primeiros-ministros, enquanto o forem e na medida em que nos garantam a maioria."

Pensar desse modo, pressionar assim, condicionar tanto, revela a mais absoluta ignorância do que seja ser-se católico e o mais completo desconhecimento daquilo que realmente é e significa. Mas adiante, que isto pouco importará a socialistas enquanto socialistas.

Para os socialistas, o que essa onda pode significar é a ruína do PS edificado por Mário Soares e por todos os que o fizeram nas últimas décadas. Soares - como até, por sinal, também o PCP - sempre revelou conhecer bem as lições da I República ou, dizendo melhor, o que dela ecoou de muito negativo no plano da chamada "questão religiosa".

O que comporta duas grandes consequências. Uma, no plano do Estado - velando por relações rigorosamente separadas, mas sempre de respeito e não de acinte ou hostilidade. Outra, mais relevante e construtivista, no plano da arquitectura do partido, assinalando sempre a importância, dentro da matriz autêntica do PS, das correntes que cita como de "catolicismo progressista", eco do anos 50 e 60.

Guterres provém exactamente daqui: da experiência directa e da vivência humana concreta do trabalho social de base, como pessoa e como indivíduo - por sinal, também católico, crente em Deus, interpelado como cristão - no terreno próximo junto dos mais pobres, onde fez boa parte da sua formação juvenil. Não no púlpito, nem nas tertúlias, nem nas manchetes, nem nos cartazes.

É isso que Soares, agora, com clareza, com vigor e com a autoridade única do pai fundador, aparece a recordar e a reter: o quadro da "grande casa da esquerda", ideia projecto que sempre o animou, numa base ampla, democrática e plural, de pensamento aberto e tolerante. E o repúdio directo, uma vez mais, do escuro e obscuro "quiosque jacobino", onde o quiseram - e alguns ainda querem - confiná-lo e destruí-lo.

Não sei se salvou Guterres - que, a meu ver, não precisava.

Mas talvez tenha salvo o PS. O PS que fundou. O PS que, por mera tolice e insensatez, ou vulgar cegueira e rancor, os "querelentos" se afadigam em pôr em causa, descaracterizar e destruir, em fundamentalismo retrógrado, muito début du siècle.

José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 1.Março.1998

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