Uma fuga pela Páscoa


Fugir é porventura um impulso ou uma comum tentação humana. Essa coisa simples de "pirar-se", "salvar a pele". Mas não é certamente em si um direito humano propriamente dito. Também não é de maneira nenhuma um ponto de referência cristão.

Esta história da evasão do Padre Frederico é altamente perturbadora. Sobretudo quando ocorreu nas cercanias da quadra pascal e, sob a precipitada influência do espírito da estação, quando a respeito dela se teceram ou sugeriram lamentáveis paralelos com o Calvário e a Ressurreição de Cristo, as mãos lavadas de Pilatos e as injustiças de sinédrios cínicos ou da exaltada turba multa.



Para os cristãos, ou para os assim apresentados, vistos de dentro por si ou vistos de fora pelos outros, esse é muitas vezes uma apressada escapatória ou uma constrangida contingência: o directo paralelo cristão. Para os cristãos, é muito forte a ideia e o impulso da imitação de Cristo. O desafio - ou melhor, o convite - do Evangelho é exactamente esse. O que está rigorosamente certo como caminho ou busca dele. Mas isso, que é assunto sério, é terreno de outro domínio, fonte de larguíssimas meditações. Agora, misturar directamente a nossa vida com a de Cristo no sentido da mais torpe confusão e de um comezinho oportunismo, como que acobertando-nos com ele para evadir responsabilidades próprias, é coisa pobre para não dizer mais propriamente miserável. Cada um, neste plano, só pode falar por si e depor a sua própria vivência, aprendizagem e caminhada. Falando por mim, estou como o outro: nem sei se sou cristão e se mereço esse nome. Sei que sou católico; e que procuro ser cristão, que é coisa mais difícil. Naquilo que a minha vida concreta tem sido, o paralelo cristão o mais que me tem ensinado é a distância. Certamente o sinal, inspiração, ânimo e rumo; mas a absoluta distância. Em matéria de imitação de Cristo, há tempos e espaços na minha vida que foram (e, se calhar, são ainda) pouco menos que uma lamentável caricatura; outros que nem sequer isso. Espaços e tempos em que não deixei entrar Cristo na minha vida e nalgumas escolhas. Por mais que eu tentasse. Por melhor que eu procurasse. Às vezes, nem tanto. Vou estando melhorzinho. Creio eu. Mas tão longe. Tão longe ainda. Tão longe.

Isto é, mesmo para um cristão, há coisas em que somos, e fomos, apenas nós. Cristo não tem nada a ver com isso. A questão e o exame para um cristão, em cada passo do seu caminho, são afinal exactamente esses: que Cristo passe a ter a ver com isso; porque não teve antes. Se tivesse ou se passar a ter, seria, será, justamente diferente. E melhor. Ou mesmo: finalmente bem.

Justificar o erro próprio com fonte evangélica é vulgar hipocrisia. Se o erro é grave, a confusão assemelha-se mesmo a grosseira obscenidade. E, se o erro busca legitimidade no paralelo directo fundamental com o martírio e a Páscoa de Cristo, então o caso pode roçar mesmo a blasfémia. Ofende, agride, irrita a fé que se anima ou que se clama representar.


O Padre Frederico pôs-se ao fresco e safou a pele. Pensa ele. Para ele estará porventura muito bem. Mas está mal para todos os outros e tudo o mais. Está mal para o Estado e para o sistema judicial português, cuja confiança traiu cobardemente. Está mal para a sociedade e para a opinião pública, que se reabrem em debates enervados e chocados. E está mal para a Igreja que ele insiste em ostentar, alvo novamente de equívocos e embaraços monumentais.

Brutal, porém, foi convocar Cristo para a trapalhada. E mais espantoso ainda quando o embaraçado e confundido bispo do Funchal, entre o cravo e a ferradura, por entre alusões à "injustiça dos homens", pareceu dar alguma bênção ao paralelismo cristão do fugitivo. Convém deixar as coisas absolutamente claras. Que Frederico fuja é lá com ele. Mas ao padre - com cabeção e tudo, como aprecia - cumpria outra coisa. Em matéria de Cristo, se há coisa que em Cristo não podemos buscar ensinamento algum é para as nossas próprias fugas e escapadelas. Cristo não é inspiração para ninguém que queira apenas e sobretudo salvar a própria pele. Como exactamente esta quadra da Semana Santa e da Páscoa acorda e revive de forma profunda e, para quem quiser e puder, vivencial.


Não faço a menor ideia sobre se o Padre Frederico é, ou não, culpado do crime por que foi condenado: a morte de um rapaz. Não recordo bem o julgamento. Deste retenho mais o ruído à volta dele - um dos problemas sérios da mediatização da Justiça - do que propriamente o que nele se apurou. Mas recordo também vividamente que, no julgamento, além dos motivos da condenação, ter-se-ão estabelecido outros factos de Frederico que não honram, nem condizem com a Igreja que escolheu servir - não apenas ser parte, mas servir; não apenas integrar, mas representar. Seja como for, a sentença transitou em julgado, esgotadas todas as vias de defesa que são as próprias de um Estado de direito. Cabia cumprir.

O caso, rodeado de contornos escabrosos, desperta naturalmente as mais acaloradas paixões, por entre alguma curiosidade pornográfica. Foi assim aquando do julgamento - é o ruído que recordo. É assim de novo por causa da fuga. Ao ponto de, reacendidas, as paixões resvalarem facilmente para o mais absurdo dos desbragamentos, mesmo entre habituais titulares de maior sentido de equilíbrio. É o caso, por exemplo, de Miguel Sousa Tavares que, anteontem, antes de procurar alvejar o próprio Papa (?!), aqui zurzia no bispo que "nunca desconfiou das tendências pedófilas do padre que, todavia, estão espelhadas na cara deste santo criminoso". Espantoso! - "espelhado na cara". Está salvo o mundo e liberta, enfim, a Bélgica do dramático pesadelo que a tem assolado. A pedofilia, afinal, descobre-se facilmente. Basta o olhar de Miguel sobre a cara dos transeuntes. Sobretudo sendo padres, presume-se. Melhor que a "máquina da verdade", de facto, só isto.

Apesar dos rigores do julgamento (que seguiu - é bom lembrá-lo - aquelas vias abertas do due process of law que, por civilização, temos como as melhores), ninguém pode obviamente excluir de todo que, afinal, Frederico estivesse inocente. E, se Frederico assim sabe ou se o bispo assim pensa, é natural que Frederico o repita. O dever, todavia, era cumprir. Não acrescentar culpa com a fuga. E, quando convocando a qualidade de padre, cabe a ambos, ao sacerdote e ao bispo, guardar a absoluta humildade das distâncias, repudiar paralelos cristãos inadmissíveis, não manipular como exibicionismo uma fé, não mascarar de crendice o fundamental cristão evocando-o - e mal - como deslocado eco teatral, não agredir o senso e o respeito elementares. Em suma: não maltratar mais a Cristo. Não invocar Deus não só em vão, mas também não em vil.

A minha boca ainda não se fechou por ter visto e ouvido, do Brasil, por exemplo, na televisão, o Padre Frederico, de cabeção engomado, chamar "muito burro" o pai do Luís Miguel. E repetir: "muito burro" (sic). Uma coisa é insistir em clamar a sua inocência, após uma fuga irresponsável. Outra, não compreender de todo, nem revelar o mais leve sintoma de respeito pelos sentimentos de um pai, cujo filho efectivamente morreu e está morto. Fazê-lo, envolto conspicuamente no fato de quem escolhe ser pastor de almas, cujo múnus insiste - ao que parece - em retomar, excede todos os limites do tolerável. Chega!

Talvez por isso, ao terceiro dia de contínuos dislates televisivos, em directo do Brasil com algumas tabelas pela Madeira, o bispo do Funchal disse a única coisa sensata que lhe ouvi no meio da embrulhada: que Frederico falava demais. Que o melhor é calar-se. É. 

Já agora, que Deus me perdoe, mas o senhor bispo também. Ou, enfim, havendo ainda autoridade episcopal, que antes recomende oficialmente ao foragido a única coisa que, na circunstância, lhe será decente e apropriada: regressar voluntariamente para cumprir o que falta.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 12.Abril. 1998

Comentários

Mensagens populares