Ali, à porta do século XXI


A morte súbita de Lucas Pires deixa-nos a todos atordoados. Amigos, próximos ou adversários, ninguém pôde ficar indiferente ao percurso de Francisco Lucas Pires na vida pública portuguesa das últimas décadas. O sentimento comum é de choque.

Para quem parte e vê chegada a sua hora, é costume dizer-se que é melhor assim: vivo, lúcido e vibrante até ao último segundo, até ao último sopro. Nunca o saberemos exactamente, porque nunca ninguém voltou do lado de lá para nos contar detalhadamente a experiência. Mas é costume pensarmos assim, nas inconsoladas palavras de consolo que nos trocamos em enterros e funerais. Para quem fica, o quadro e a notícia é de absoluta brutalidade. Sobretudo para os mais próximos de todos, a família directa.

Não era um dos muitos amigos de Lucas Pires. Não fui seu próximo. Também não era inimigo, mas fui as mais das vezes seu adversário. Nos campos em que cedo se dividiu o CDS, coube-me sempre estar do outro lado. Quando assim é, a morte de quem parte mais cedo que nós deixa-nos um específico sentimento de tristeza e aquele vago desejo, sempre adiado e incumprido, de mutuamente nos termos podido esclarecer antes da partida.

Hoje, após o recente Congresso de Braga, tenho de novo gosto em pertencer a um partido, o CDS-PP, que quer explicitamente reencontrar a totalidade da sua história e a plenitude da sua doutrina característica. E reencontrar-se todo ele exactamente por aí. Mas a circunstância de Lucas Pires, um dos mais brilhantes dirigentes do CDS e um dos seus sempre marcantes presidentes, ter morrido ali ao lado, enquadrado no PSD, força­-nos a todos a uma revisão do acontecido. É uma fortíssima e incontornável interpelação colectiva.

Várias vezes tenho dito e escrito que a crise do CDS remonta à liderança de Lucas Pires. É o que penso, como o vivi e conheço. Mas esqueci-me sempre de acrescentar o resto. Os erros foram de todos, incluindo também dos que se lhe opuseram. Entre os quais eu próprio.

Há algumas semanas, fascinei-me a ver desenrolar-se o Congresso do PSD em Tavira. O debate político rolou intenso e vigoroso. A corda foi mesmo esticada ao limite. Mas nem durante, nem depois, alguma vez por ali se sentiu que pudesse vir dano à unidade do partido. Antes pelo contrário.

É verdade que, no seu passado, o PPD-PSD também está cheio de histórias menos edificantes, de fracturas e cisões, de facções e fracções. Mas, enquanto o PSD soube amadurecer colectivamente ao longo dos anos, fortalecer sempre o elementar sentido gregário e ultrapassar a fase inevitável das zaragatas juvenis e dos tabefes escolares, o CDS parece ter-se ficado por aí. O PP, pelo menos até Braga, seguiu-lhe rigorosamente as pegadas e o exemplo. Querendo-se novíssimo e fresco, começou logo enrugado, crispado e ralhão. Para o CDS-PP e a promessa de renascimento acordada em Braga, o problema e o desafio são exactamente esses.

Na história do CDS e do PP, esse é o seu maior paradoxo. Ao centro e à direita, foi tendo das ideias mais brilhantes, das propostas mais consistentes, das iniciativas de visão mais rasgada. Mas já quanto às suas gentes e à química concreta em que foi consistindo, as "estórias" são muitas vezes incontáveis. Famílias azedas dispostas à bulha, em exuberante espectáculo siciliano, com trincheiras internas e frechadas atrás das moitas, facadas furtivas volta e meia, desforras ácidas. Daí a imagem que se generalizou: muitos indivíduos excelentes, colectivamente uma lástima. Grandes pensamentos, péssimos sentimentos.

Começou exactamente assim no princípio da década de 80 e nunca, no CDS ou no PP, nos recompusemos por inteiro. O ensaio geral fora em 1978, tendo como laboratório a JC, num seu congresso em Viana do Castelo, que estreou a liça entre "adelinistas" e "piristas". O efeito contagiou-se ao partido e nunca mais parou desde então. Os "ismos" foram mudando de nome próprio, com o passar dos anos, dos protagonistas sucessivos em cartaz e das crises recorrentes. Mas o péssimo hábito, autofágico, suicidário e fraccionista, foi ficando, refinando-se e fazendo escola. Braga foi uma promessa de reencontro geral. E é seguramente um compromisso de maturidade, de reunião e de crescimento. Oxalá.

Por essas e por outras, é que muitos acabámos peregrinando por aí. Muitos ainda andam a vogar, a monte ou alinhados noutras bandas. Francisco Lucas Pires, um dos maiores expoentes do CDS, acabou no PSD.

A história, já agora, por elementar razão de justiça, tem que se dizer toda inteira. Para Lucas Pires, às tantas, a forma de permanecer fiel chamava-se PPE. O Partido Popular Europeu, a que justamente o CDS democrata-cristão dera o seu contributo fundador e com que, a certa altura, cambalhotando contra si, o PP decidiu irreconciliar-se. Lucas Pires continuou. Com bastante dose de verdade, foi o PSD a aderir ao PPE mais do que sobretudo ele a transferir-se para o PSD.

Seja como for, esteja onde estiver, em paz certamente, Francisco Lucas Pires será sempre um carisma residente no CDS-PP, na sua história e na sua memória. Seria ridículo ignorar os factos e a história concreta e oportunismo caricato alimentar agora, tarde e a más horas, uma querela ao modo de saber, como a respeito de Santo António, se é de Lisboa ou se é de Pádua. Basta-nos assinalar o que foi e retermos todos o que todos perdem com a partida de cada um. Sobretudo dos melhores.

Um seu amigo comentava, na imprensa: "Morreu como viveu, sempre a correr, cheio de pressa, de um lado para o outro."

Nesta geração que, aí pelos seus vinte ou trinta anos de idade, percorreu a Revolução de 1974-75, há um extracto assim. Descuidados com a saúde ou com a segurança própria, frenéticos na corrida pelo futuro, cívicamente possuídos por uma paixão construtivista e a pressão da comunicação. Parte disso é temperamento pessoal. Outra parte - boa parte - eco e resultado directo do concreto tempo histórico que lhes foi dado atravessar.

Os que vivemos a correr, morremos mais depressa. É como um destino físico. Como se, de tanto correr, se chegasse mais depressa ao tempo e ao lugar da chegada final. No nosso campo político, o primeiro foi o Adelino Amaro da Costa. Agora, o Francisco Lucas Pires.

Para quem crê nestas coisas e os conheceu e viu juntos, ainda quando desavindos, não custará imaginar que já se tenham abraçado por esta altura, que já se tenham rido dos tempos e destempos idos e que, criativos ambos como poucos, já se tenham mesmo posto em conjunto, cheios de pressa e de energia um como outro, a rabiscar ideias e linhas de um qualquer manifesto para uma alternativa democrática para Portugal. A seu tempo, mas mais cedo que tarde.

Há nisto tudo um especial sabor injusto. Lucas Pires, que foi inquestionavelmente um dos espíritos mais fulgurantes e inovadores do Portugal moderno, que mais batalhou pela modernidade do país, ficou em 1998, exactamente ali, tão às portas do século XXI. Um século por cujas esperanças e promessas tanto trabalhou e batalhou pelos portugueses. Um século que ajudou a preparar, que também visionou na Europa, mas que, aqui, ao lado dos que ficam, já não viu.


José Ribeiro e Castro
Jurista, dirigente do CDS-PP

PÚBLICO, 24.Maio.1998

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