Benfica SAD ou trespassado?

O suplemento de Desporto do "Expresso" publicava ontem um interessante artigo - "Adeptos ou accionistas?" - que retoma uma velha linha de debate a propósito das SAD: a constituição das sociedades anónimas desportivas, as tensões de raiz que isso trará pela transformação da realidade dos clubes e um amedrontado sentimento difuso de que uma SAD é como que um trespasse do clube. A questão resume-se numa fácil pergunta: há, ou não há, directo conflito de interesses entre os clubes e as SAD? 

Segundo creio, não há nenhum conflito de interesses essencial entre clubes e SAD, entre adeptos do clube e accionistas da SAD. O interesse objectivo da SAD passa obviamente pela solidez financeira e pelo sucesso económico, isto é, pela boa gestão. E o interesse objectivo e subjectivo dos adeptos é claramente o dos triunfos, o do êxito desportivo. Isto pode parecer diferente, mas é exactamente a mesma coisa, quer na teoria, quer na prática. No fundo, bem vistas as coisas, o sucesso económico da SAD depende directamente do mais elevado grau de satisfação dos adeptos, seja daqueles que são sócios do clube, seja também dá sempre mais vasta multidão de seguidores e simpatizantes. É diretamente o desempenho desportivo, o "estar na luta", a tensão e a busca dos triunfos que mantém e alimenta A geral animação clubista, que determina os estádios cheios, as grandes audiências, o movimento do "merchandising", por onde caminham as principais linhas de receita e de sucesso económico da SAD. E, em contrapartida, a boa gestão das SAD também é para os adeptos garantia de que a equipa do seu coração, o seu clube, nas proporções adequadas à especifica dimensão de cada um, vai manter e consolidar, num mundo de competição cada vez mais complexa e exigente, aquelas sólidas condições económico-financeiras que lhe permitirão estar e fortalecer-se "na luta", sem angústias repentinas, sem um permanente "credo na boca" e longe dos tempos de ruína que tudo abalam ou comprometem.

Sempre entendi que há como que um tratado tácito, implícito, entre adeptos e accionistas, Sendo que os accionistas também são adeptos e muito adeptos accionistas. Dizem os adeptos para os accionistas: " Giram lá isso bem e dêem-nos triunfos, que nós daremos receitas." E dizem os accionistas para os adeptos: "Deixem-nos gerir isto bem para vos podermos dar os triunfos." Pensando também no seu íntimo: "Só teremos receitas se mantivermos o mais alto grau de satisfação dos adeptos."

Há depois o comentário simplista: “As SAD não marcam golos!” É verdade. Mas aí não há diferença alguma: os clubes-associação também não marcam golos. Quem marca golos são as equipas, ou melhor, os jogadores. E isso, santa paciência. Há dias em que a bola entra e há dias em que a bola não entra. Há tempos em que se joga melhor e tempos em que se joga pior. Há horas de sorte e horas de azar. É assim o futebol, cujo pensamento mais eterno e mais profundo é sempre o do velho lugar-comum: “A bola é redonda.” No estatuto tradicional ou nas SAD, é assim: a bola é sempre redonda… Quanto ao essencial, não há conflito, mas solidariedade de interesses: o triunfo que é igual a sucesso; a boa gestão que é garantia de presente e de futuro para as aspirações gerais e duradoura do clube.

É claro que há sempre diferentes orientações de gestão e diferendos possíveis quanto a escolhas concretas. O exemplo do artigo sobre os dilemas na compra e venda de jogadores pode acontecer, e acontece, tanto no clube tradicional como no clube enquanto SAD. Sempre haverá quem pense que deve vender-se porque a operação permite novas contratações, como haverá quem pense que de maneira nenhuma. Sempre haverá quem sustente perspectivas mais prudentes e equilibradas de gestão, como quem propenda a linhas de alto risco. E por aí fora. Tanto no clube como na SAD. Isso não é conflito de interesses, mas divergência de opinião, numa sede como na outra.

O traço distintivo apenas pode ter um nome: responsabilidade. A SAD responde. O clube tradicional nem sempre. É esse o único e verdadeiro “quid” do modelo legislativo actual. Claro que, na prática, tudo acaba por depender do modo concreto como as coisas são feitas. De preferência, devem ser bem feitas. A minha perspectiva é a de um benfiquista, sócio há quase 30 anos, com uma experiência recente interrompida em contacto estreito com este dossier. Ainda estou para perceber por que exacta razão se negou primeiro, se interrompeu e suspendeu a seguir e, enfim, se abandonou ou adiou para as calendas o projecto de constituição da SAD que a direcção tão entusiasticamente levara à assembleia geral do clube em 7 de Novembro, pouco depois de eleita e de acordo com um expresso modelo vinculado que comportava enormes vantagens para o clube.

O sentimento que tinha, aquando das eleições em 31 de Outubro, era o de que o Benfica, por razões de instabilidade interna que o vinha tolhendo, tinha deixado atrasar-se neste plano face aos seus rivais mais directos: o Sporting e o FC Porto. E que cumpria recuperar depressa esse tempo e esse passo, com segurança e com rigorosa protecção e defesa dos interesses do clube. Não fui, aliás, só eu. Se recuarmos a 31 de Outubro, nessas extraordinárias eleições de generalizada reanimação benfiquista, 100 por cento dos sócios eleitores do clube manifestaram-se claramente nesse sentido – não era só a lista A; as propostas de Luís Tadeu e de Abílio Rodrigues apontavam também esse caminho, embora com “nuances” de projecto concreto.

Nem antes, nem depois de sair da direcção, ouvi um só argumento convincente ou uma única razão inteligível para o Benfica que justificasse ter-se arrepiado caminho. O modelo jurídico estatutário estava definido e estabilizado, garantindo o rigoroso controlo e poder do clube sobre a SAD, na maioria e na gestão. A propriedade do estádio e a titularidade de marca estavam salvaguardadas e protegidas no clube. O supremo senhorio soberano dos sócio – “clientes” privilegiados da SAD e da sua dinâmica – estava afirmado, assim como acautelada a preservação dos valores e reservas de referência do clube. A assistência do Banco Essi era competente, rigorosa e fiável. O modelo financeiro era interessante. O caminho estava traçado, aberto e disponível. Só faltava fazer. Para o valor global da SAD à vista, nunca li ou ouvi valorizações inferiores a 10 milhões de contos, dependendo as perspectivas de encaixe de capital do modelo concreto por que se optasse a final, bem como do exacto volume de acções que o clube entendesse ou precisasse de lançar no mercado, fosse na subscrição popular junto de sócios e adeptos (ou do público), fosse na colocação directa junto de investidores criteriosamente seleccionados. Estas perspectivas não eram seguramente um voluntarismo de sócios sonhadores ou apaixonados pelo seu clube, que também sou. Sinal de que os estatutos-garantia eram perfeitamente compagináveis com as normais aspirações de investidores era o facto de que foram sempre desenhados e construídos em parceria com o Banco Essi, que assistia o Benfica; confirmação de que as perspectivas de valor não eram exageradas estava em que, também anteriormente, o Finibanco fizer (e arriscara até do seu bolso) projecções similares e da mesma ordem de grandeza. O Benfica tinha um caminho seguro.

Como é que se troca, em~tao, uma solução de capitais próprios por uma incerta perspectiva de contínua derrapagem nas areias movediças dos capitais alheios, é quadro que excede a minha total capacidade de compreensão. Sobretudo quando se o faz numa assembleia geral, em que se rasga o programa da lista A, substituindo-o por outro, num clima atormentado e precipitado que se sintetiza no seguinte pensamento: “Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe.”

Na vida comum, todos sabemos a diferença entre arranjarmos sócios e termos credores. Aqueles ligam a sua sorte ao nosso destino comum. Estes não. Também nos ajudam em determinadas alturas, mas não ficam a trabalhar connosco. E, quando as coisas correm mal ou não correm tão bem, aqueles que são os nossos sócios continuam ao nosso lado, enquanto os credores, vamos dar com eles em cima de nós. Não nos alargam os braços, apertam-nos a garganta.

Nos estatutos de um a sociedade, podemos sempre gerir e controlar as relações. Não assim nas relações de créditos – quando corre mal, correu. É o credor que tem poder sobre nós, não nós sobre eles.

Na encruzilhada financeira da vida do Benfica, esta reflexão não pode ser afastada. A SAD não seria e nunca será seguramente o El Dorado – que é, aliás, quimera, fantasia que não existe. Era, e é, um projecto societário sério em que o clube, de acordo com o modelo que ele próprio desenha, se junta a novos sócios: os accionistas – muitos deles, de resto, provindo, por ordem natural das coisas, de entre a enorme massa de benfiquistas dos quatro costados, em Portugal e no mundo inteiro. Parte do passivo (o do futebol) ficaria de imediato saneado, enquanto o futebol do clube encontraria de imediato quadro estável de reestruturação, gestão profissional, tranquilidade financeira, algum desafogo e relançamento em bases sólidas. Nenhum trespasse viria certamente daí – estaríamos a trabalhar com sócios e parceiros, na maioria benfiquistas de sempre, de alma e coração, e outros aliados numa relação de triunfo e sucesso.

A alternativa é a de continuação e aprofundamento do endividamento de que poderão vir a resultar sempre, por seu turno, outras formas de trespasse, total ou parcial, do clube e dos seus activos. A pior forma de alienação e de submissão para quem quer que seja é sempre aquela que, de modo surdo, ao modo inexorável de um destino, se vai acumulando e acastelando na voragem dos passivos gordos. Que, no fim da estrada, deixam os sujeitos magros. Esqueléticos até. No osso. Desprotegidos diante dos seus credores. Sem que sócios possam já socorrer ou valer muito.

Vinte milhões, ou cerca disso, é – convenhamos – horizonte de passivo gigantesco.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 31.Maio.1998






Comentários

Mensagens populares