Dias decisivos


Há anos que não me lembro de um Verão político destes. Não é um Verão quente. Mas a estação vai cheia de motivos de interesse e até animada. Poderíamos até afixar o letreiro: Season not so silly as usual. Por mais distraído que se ande.

Esta rentrée política não será em Pontais, Pontalinhos e aparentados, arrancados a ferros, como se tornara rotina cansada e gasta, a cumprir calendário. O ano político 1998/99, desta feita, arrancou na cimeira do Porto entre as direcções do PPD/PSD e do CDS/PP apontada à alternativa democrática.

É claro que há resistências a acenarem contra a compreensão deste facto. Procuram continuamente desvalorizar ou comprometer o processo que foi posto em marcha nos últimos congressos dos dois partidos. Algumas dessas resistências são sintomáticas. Outras são apenas espantosas. Mas, a seu tempo, se verá como o ano político que está por diante efectivamente começou ali. É um processo - uma estratégia que se desfia ao compasso do tempo. E, contra os cepticismos da praxe ou o simples cinismo de estilo e propósito, desmentindo maus agoiros e os pasmados do costume, a cimeira do Porto reafirmou o rumo, pontoou o caminho, marcou o ano que aí vem. As tarefas políticas estão claramente balizadas e marcadas. Quem quiser pôr-se do lado da alternativa sabe o que tem a fazer. As contas far-se-ão daqui por um ano.

Quem se afastar por tiques de diferença é porque prefere a continuidade socialista. Já se sabia que, à esquerda, as coisas não seriam fáceis. É natural. A alternativa democrática é precisamente alternativa a ela. Custa mais a entender os que à direita se vão perfilando como a maior esperança dos socialistas. Houve sempre assim: os que fazem que andam, mas não andam.

Há sempre os que preferiram ser direita muito cumprimentada na paisagem socialista, elemento de folclore no sistema, do que fonte real de alternativa ao poder socialista. Os socialistas já deram, aliás, sinais de como os apreciam e lhes reservam uma zona de paisagem protegida, mesmo todo um parque natural, uma Foz Côa inteirinha só para eles. Que venham: contra a Europa, contra a descentralização, "não" carregado a quaisquer regiões, e todas as demais outras durezas do estilo. PS e PCP agradecem. Quanto mais radical melhor.

O movimento Nação Unida parece pretender esse estatuto. E as graças com que se disse urna outra AD são simples sinal disso. Se PSD e CDS/PP dizem "não" à concreta regionalização proposta, nações unidas e portugais únicos aparecem a gritar "NÃAAAAAO!", com muitas maiúsculas, a negro e milhares de pontos de exclamação. É curioso o seu destino. É triste - e pode ser contraditório - o movimento que encetam. Se em Novembro, no referendo, o "não" triunfar, não é a eles que se deverá. Mas à firme opção estratégica definida e intransigentemente marcada por Marcelo Rebelo de Sousa, desde o congresso de Tavira. E, no campo do CDS/PP, à forma corno a linha de Paulo Portas repôs, em tempo curto, urna unidade de intervenção partidária que estava completamente desfeita - esfrangalhada é a palavra.

O "não" ganhará, não pelo ditame durão de um centralismo unicitário, mas porque a alternativa democrática se atravessou no caminho e aponta outros rumos de desenvolvimento e também de descentralização para Portugal. Não fossem Marcelo e Portas, e o campo do "sim" alastraria inevitavelmente nas áreas do CDS e do PSD.

Ao contrário, se até Novembro, no referendo, as sondagens dessem uma cambalhota e o "sim" afinal ganhasse, os cumprimentos não deixariam de ser endereçados aos fundamentalistas do ralhete e à reacção que, entretanto, teriam gerado na opinião pública, entre muitos indecisos e regionalizadores contidos. O "não" que empunham só ganha entre aqueles que os não ouvem. Se ganhar o "não", não será por aí. Se crescer o "sim", terá sido por isso.

Triste sina, na verdade. Há os que ampliam confiança; e há os que alastram a desconfiança. O referendo de Novembro será mesmo um ensaio geral das legislativas de 1999. Está escrito.

Timor é outro fervilhar de novidades, de horizontes em decisiva transformação. Os tempos prometem e a libertação de Xanana Gusmão parece poder estar para breve.

Da última reunião de Nova Iorque já se disse tudo: as esperanças que acentua; as cautelas que impõe. Tempos de distensão, tempos de alto risco - um passo a mais e passou-se para o outro lado da barricada. Há que ser confiante. Mas, para isso, é indispensável continuar firme.

Portugal deve, é claro, construir para o futuro as melhores relações com a Indonésia - com uma condição: a de que, entretanto, Timor-Leste tenha sido libertado e a autodeterminação cumprida. Do mesmo modo que o interesse objectivo de Timor é o de ter as melhores relações de vizinhança com a Indonésia - com uma condição: a de que seja livre. No fundo, que Timor e a Indonésia sejam exactarnente isso: vizinhos. Portugal não terá nada contra a Indonésia - desde que a Indonésia deixe Timor em liberdade. Assim corno Timor não terá nada contra a Indonésia - desde que a Indonésia deixe Timor em paz.

A política portuguesa não pode desviar-se um só milímetro dos anseios dos timorenses. Agora mais que nunca. Podemos pensar o que quisermos. Mas só podemos fazer uma coisa: o que os timorenses desejam e querem. É esse o único legítimo mandato português. A única política própria de Portugal é servir a política própria do povo timorense. É o referendo? É o referendo. É a autodeterminação sem ambiguidades? É a autodeterminação sem ambiguidades. Por isso, a "autonomia especial" pode ser talvez um passo; mas não pode ser um destino.

Os riscos pendentes durante todo este degelo estão bem claros em dois trechos da entrevista do Presidente Habibie à RTP. Habibie comenta que os timorenses "poderiam juntar-se mais facilmente à Indonésia do que à União Europeia"; e pergunta candidamente: "Se Timor pode ser independente? Pode Portugal ser independente da União Europeia? Não responderei a isso." Vai por aqui toda a confusão: uma, a de que a União Europeia é um imperialismo à Indonésia clássica; outra, a de que Portugal já não é um Estado independente!...

Mas a mais sintomática é a declaração de Habibie sobre a libertação de Xanana: "Se Lisboa e Jacarta acordarem sobre a integração de Timor, então tudo estará acabado. Até lá, não." Esta é uma declaração política extraordinária. Significa que, para a Indonésia, Xanana foi feito refém de um acordo político com Lisboa. Ao que Lisboa só pode obviamente dizer que não. A liberdade de Xanana confunde-se com a liberdade de Timor. E Lisboa não pode acordar coisa nenhuma que não seja a exacta estrada para os acordos que, quando em liberdade, Xanana e os timorenses eles próprios decidirão.

Dias decisivos, na verdade. Dias únicos, como poucos.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO. 10.Agosto.1998

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