Zip!
Enfrento o próximo referendo da regionalização com sentimentos que, confesso, me são particularmente difíceis. Transformado num palco directo de batalha político-partidária, não me resta outra alternativa senão abster-me de participar na campanha pelo "sim". A circunstância de haver há poucos meses interrompido a minha condição avulsa, criou-me, aqui, uma posição mais complicada do que eu próprio desejaria. Mas, como as coisas são o que são, faço-o por uma directa e simples questão de lealdade ao CDS-PP, e à posição maioritária que definiu em referendo interno no sentido do "não".
Não me considero um regionalista. Aliás, os regionalismos foram um dos territórios por onde o PS foi deixando tudo descambar. Mas sempre fui um defensor convicto da descentralização administrativa, incluindo a descentralização distrital ou regional. E não é natural que venha a mudar de posição. Por uma razão simples. Não se muda, assim, de convicções.
Nem sequer o teor do acórdão do Tribunal Constitucional me serve de grande consolo ou anteparo, diversamente do que parece ter sucedido para serenar alguns ânimos no seio do PSD. É que o mapa até nem me incomoda particularmente. Com uma diferença, no meu modesto parecer. A de que as regiões administrativas até deveriam ser, sempre na minha modesta opinião, mais duas do que as propostas: o Baixo Alentejo fora da alçada de Évora; e o Minho autonomizado da região do Porto, cuja lógica territorial deveria ser antes similar à de Lisboa - isto é, metropolitana. Assim sendo, a minha posição torna-se mais complicada ainda. Pelo que, tudo visto e ponderado, resumindo e concluindo, puxo do fecho "éclair" e já está. Calo-me. Zip!
Não estarei só. Valha-me o consolo e a companhia, salvaguardadas as diferenças e as proporções. Em situação homóloga, mas rigorosamente inversa, estará por esta altura Mário Soares, adepto do "não". Não estou a vê-lo em campanha activa contra o seu PS, protagonista do "sim". E também não estou a vê-lo a mudar de posição. Assim sendo ... é, uma vez mais, zip! E vão dois.
Tenho pensado longamente sobre este assunto, velho de pelo menos vinte anos em Portugal. E não vejo forma de, se quer aspirar a condições de desenvolvimento mais dinâmico e equitativo, Portugal conseguir fazê-lo sem resolver este problema crónico, que se arrasta numa disfuncional e desequilibrada estrutura do Estado, que é o do patamar de administração intermédia entre os municípios e a administração central. As regiões administrativas, substituindo os distritos, eram a via traçada pelos constituintes de 1976. Só faltava fazer. Agora, parece que não.
Há um único argumento dos defensores do "não" que me impressiona, ao fim do tempo de legislatura que já vai decorrido: o da forma absolutamente desastrada como o PS conduziu todo o processo. Uma reforma de fundo como a da administração regional, merecedora da apropriada qualificação de "reforma de regime", teria merecido outro grau de consensualização, sobretudo entre os maiores partidos. Não o galope acelerado, seguido de engasganços e guinadas a que fomos assistindo. Isto - claro! - se se quisesse mesmo fazê-la. Porque se a ideia era, afinal, apenas a de definir um território de desafio político-partidário e de marcar o duelo final, então foi plenamente conseguida: ele aí está. É pena. Mas foi assim. E, sendo assim, é aí que ficámos.
A posição que vou adaptar tem fundamentalmente a ver com essa circunstância hoje incontornável: entre o "não" e o "sim", escolho a alternativa democrática.
O outro erro socialista tem sido o de parecer confundir regionalização com demissão do Estado central. Não é crível, nem aceitável, que a regionalização se faça porque o primeiro-ministro não sabe ou não quer decidir sobre uma estrada em Proença-a-Nova. Se assim fosse, o melhor era mudar logo de primeiro-ministro. A administração pública tem departamentos suficientes e direcções regionais desconcentradas bastantes para habilitar o ministro João Cravinho a tornar uma decisão fundamentada e informada a esse respeito.
Mas esse desabafo de António Guterres, há dias, ilustra um dos defeitos socialistas no processo seguido, além do circunstancial aceno simpático aos beirões: "Decidam vocês, que eu não sei." O PS montou-se a galope no corcel regionalizador, arrastando o PCP ora como Sancho Pança, ora mais como directo Rocinante; mas o Governo do PS parece ter-se esquecido por inteiro do desenvolvimento regional. Para depois. Só para depois. Sempre só para depois. Como se não houvesse desenvolvimento regional sem regionalização. Ou como se tivesse optado por uma greve de zelo a preceito.
Não é assim. É facto que a descentralização, seja municipal, distrital ou regional, é peça estratégica importante do processo de desenvolvimento geral e do combate às assimetrias. Mas há outras estratégias, outras políticas e muitas decisões de desenvolvimento regional que sempre caberão ao Estado e à administração central, sob pena de um geral fracasso e de os desequilíbrios acabarem por agravar-se. Demissionismo é o que não queremos. PSD e CDS-PP poderão marcar, aqui, alguns pontos substantivos, se, como foi anunciado, apresentarem, antes do referendo, propostas interessantes tanto para o desenvolvimento regional como no terreno de modelos alternativos de descentralização administrativa, dando uma resposta capaz à redistribuição do quadro humano para o desenvolvimento.
Tenho muitas dúvidas sobre o acerto político da aposta estratégica de Marcelo Rebelo de Sousa, avançada a partir do último Congresso do PSD em Tavira, blindando a posição pelo "não": agora, o referendo; amanhã, as legislativas. O referendo foi marcado de modo inapagável como as primárias das legislativas de 1999. O Tribunal Constitucional, aliás, clarificou-o, acentuando-o. E todos os principais contendores contribuíram, afinal, para isso.
Mas não acompanho de todo o planeamento pausado de Santana Lopes. Haverá sempre outros tempos para reabrir e repor o debate interno, longe do oportuno day after de todas as febres. Ainda que preferisse outro voto, outra posição e outra distância, não estarei contra ninguém se o "sim" ganhar. Nem apontarei o dedo a Paulo Portas, nem a Marcelo Rebelo de Sousa. Seja como for, na circunstância que nos foi dada, a minha posição é apenas aquela: entre o "não" e o "sim", escolho a alternativa democrática.
Se ganhar o "sim", haverá apenas que trabalhar-se de imediato para aperfeiçoar o novo quadro, depois do parto socialista a trouxe-mouxe.
Se ganhar o "não", haverá que recomeçar tudo outra vez, em chão mais sólido e passos seguros, em prol da descentralização administrativa. Haverá até neste caso que olhar-se de novo, inevitavelmente, para o próprio quadro constitucional e questionarmo-nos sobre se aquilo que o país efectivamente quer, no Continente, não será apenas a directa democratização do quadro distrital, clássico e já enraizado, a par do contínuo reforço do municipalismo.
E, posto isto: por mim, zip!
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 2.Agosto.1998
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