Banhada x 8


Eh! Eh! O riso, como diz o outro, é do nervoso. É sobretudo o sentimento de ironia numa derrota de estrondo: estar no campo dos vencedores - e todavia ... Explico-me. Dirigente nacional do CDS/Partido Popular desde há meses, entendi que não devia fazer campanha pelo "sim". Também a não fiz pelo "não" - nunca o faria. Fiz "zip" total e reconduzi-me nesta questão à simples condição de mais um votante. Pertenço à minoria dos derrotados.

Na campanha, o cartaz com que me identifiquei era o afixado pelo pequeno grupo dos "centristas democrata-cristãos" - sobre um fundo de imagem de vibrantes bandeiras da velha AD, a memória directa de que se mantinham de acordo com a regionalização e uma pergunta, que era uma interpelação: "E você?"

Ora, o aborrecimento desta coisa de fazer perguntas acontece quando as perguntas não são meramente retóricas. Isto é, quando, pedindo respostas, as pessoas dão mesmo a resposta. E neste caso ... que resposta! Um rotundo e absoluto "não". Foi isso que os portugueses a todos nos disseram no domingo passado - e com um destacadíssimo contributo da que tinha sido justamente a base da velha AD.

Para mim, isso funcionou finalmente corno um indesmentível esclarecimento, o esclarecimento que me faltava. No domingo passado, dia 8 de Novembro, faz hoje uma semana, ouvi pela primeira vez o único argumento capaz de me convencer contra a regionalização - é o de que, efectivamente, os portugueses a não queriam e não querem. Ponto final.

Pode, é certo, especular-se ao infinito sobre a total partidarização da campanha por parte dos partidos à direita e sobre alegados efeitos de "distorção" introduzidos por este factor de militância eleitoral. Mas isso também é verdade para o campo do "sim", como a muito limitada excepção alentejana bem traduz. A verdade, que se escancarou aos olhos de todos, é a de que os portugueses ou são esmagadoramente indiferentes à regionalização - não vendo nela benefícios -, ou activamente a rejeitam por inteiro - sentindo-lhe perigos e malefícios. A prova real ficou feita, por margem que não consente a dúvida mais leve. Fosse a regionalização uma causa real ou uma necessidade sentida pelas pessoas e não haveria disciplina partidária que, contra ela, pudesse resistir: no momento da verdade, irromperia corno um vulcão.

O vulcão, afinal, foi ao contrário - e a lava jorrou sobre Guterres e o PS. A surpresa (surpresa, para mim, é claro, que era afinal "o desfasado") veio de sítios absolutamente insuspeitos: a "deprimida" Beira interior, as "esquecidas" gentes transmontanas e durienses, as imediatas cercanias do activo "quartel-general regionalista" no Porto, o próprio preconcebido "reino dos Algarves". Uma verdadeira banhada! Contra factos não há argumentos.

Quando neste atabalhoado processo (que morre no ovo) se decidia pelo referendo, escrevi nestas páginas que era mesmo necessário que o referendo se fizesse, ainda que (remotamente, pensava eu) se perdesse. A prova real não devia omitir-se. O povo, sobretudo o povo das regiões mais distantes do centro das decisões, em nome de quem a reforma era promovida, tinha o absoluto direito de se pronunciar.

Era Abril de 1996 e escrevi: "Tendo estas convicções firmes, há sempre a história do escuteiro e da velhinha: o escuteiro quer fazer a boa acção do dia e ajudar a velhinha a atravessar a rua; mas ... e se a velhinha, ela, não quer atravessar a rua? O escuteiro força-­a ?" Foi assim que me senti na noite do dia 8. Eh! Eh! Afinal, "a velhinha" não queria, nem quer de todo atravessar essa rua - por mais vantagens que o escuteiro lhe cante ou generosidade voluntarista que seu coração derrame. Ficou dito. Estou esclarecido. O escuteiro, afinal, era um chato.

Esta é que é justamente a singular e inigualável vantagem dos referendos: o extraordinário e directo poder clarificador contido na absoluta simplicidade de uma pergunta de "sim" ou "não". Independentemente da forma como os partidos decidem posicionar-se ou não, independentemente do número de movimentos cívicos que se formam e de assumirem ou não toda a primeira linha do debate, é o povo eleitor quem sempre aqui decide directamente, sem qualquer mediação. Saltando por cima de analistas e comentadores, abdicando pontualmente da representação política, liberto de ideias feitas e da opinião publicada, o povo eleitor, por uma vez, em vez de estar sempre a ouvir o que a aldeia política tem para lhe dizer, diz directamente aos políticos o que quer que eles façam ( ou não façam) sobre uma determinada questão fundamental.

Por isso é que muita esquerda já se movimentava e continua a movimentar-se contra o próprio instituto do referendo. A permanente manipulação e o possuído condicionamento do "politicamente correcto", do proclamado "caminho da História", dos "imperativos do progresso" e outras tretas jacobinas gritadas d'O Alto, torna-se mais difícil. E dá dissabores. Uma maçada...

É óbvio como estava tudo feito para, na noite de domingo, se rezar o solene responso pelo enterro do referendo, com o fundamento (falso e manipulado) de que a abstenção era "esmagadora" e de que "os portugueses não gostam de referendos". Tratava-se de castigar os que votam por causa dos que não votam. Mas nem esse jeito os portugueses lhes fizeram. Longa vida ao referendo, na verdade.

A tese, aqui defendida há dias por Fernando Rosas, de que "toda a gente sabe que o referendo é um instrumento perigoso nos regimes democráticos" e de que há coisas que não podem decidir-se em termos de "sim" ou "não", é uma tese eloquente e verdadeiramente extraordinária daquilo mesmo. Desde logo, que perigo vem, que perigo pode vir para a democracia do seu próprio exercício?

E, quanto à alegada impossibilidade de se decidir por "sim" ou "não", não passa de uma falácia completa. Todo o processo decisório, seja individual ou colectivo, seja directo ou por representação, acaba sempre nessa resposta simples e básica: "sim" ou "não"; por aqui ou por ali. Mesmo quando as decisões são de compromisso ou de encontro de posições e seja qual for a viagem, mais curta ou mais comprida, das dúvidas interiores e das ponderações a fazer, aquilo que quem decide tem sempre que dizer no momento de decidir é: "sim" ou "não". Nada de mais simples e verdadeiro - e, por isso, é certo, mais difícil do que ir apenas na onda.

O sinal da dificuldade - que é a comum dificuldade de qualquer acto de decidir - é dado justamente pela dimensão da abstenção. O que não passa de uma outra revelação do facto longamente conhecido de que muita gente gosta sempre de votar "ao centro".

Outra vantagem do referendo nas questões fundamentais está justamente aí: uma, a de que a abstenção também é forma de expressão política e a sua medida também medida útil; e outra a de que, faltando no referendo a possibilidade do "aconchego centrista", os votos "centrais" ficam na abstenção e não podem ser apropriados, nem usados a favor de uma ou outra parte, para, em manipulação posterior, por via da representação, viciar aquela que era a verdadeira expressão do sentimento popular numa dada questão de orientação fundamental.

É gira esta esquerda: "o povo é quem mais ordena", excepto ... quando ordena contra o que se quer. Grande sentido de democracia.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 15.Novembro.1998

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