Longa vida ao referendo!
Tocados sem dúvida pela recordação da baixa participação popular (32%, salvo erro) no referendo sobre o aborto em Junho e pela possibilidade de uma maioria abstencionista se repetir no referendo de hoje sobre a regionalização, têm-se sucedido artigos ou simples comentários sobre a crise do próprio instituto referendário. Pobre referendo! Tão novo e já à beira de morrer...
É certo que alguns desses artigos eram apelos explícitos ainda à intensificação da própria participação popular, procurando chamar a atenção dos eleitores para o risco de que esta novidade da democracia directa (o referendo) lhes poderá ser retirada para o futuro, caso os eleitores não a usem, não demonstrem estimá-la, e escolham maioritariamente a via aparente do alheamento. Se assim é, também eu me associo a esse espírito - se é que os abstencionistas são sensíveis a este tipo de argumentos ou até se é que os lêem ... São esses os meus votos para este domingo: que todos, pelo "sim" ou pelo "não", exerçamos o direito e cumpramos a responsabilidade que hoje, directamente, nos pertence.
Mas, à parte isto, não concordo com quase mais nada. Sendo sempre desejável a maior participação em todos os actos de soberania popular, não concordo que uma alta abstenção ponha em causa a sua legitimidade, nem que coloque em crise o próprio instituto do referendo. E sobretudo não posso concordar com a legitimação desse tipo de argumentos para o futuro. Pode, na verdade, acontecer que, caso uma inclinação maioritariamente abstencionista se repita, apareçam partidos ou políticos individualmente (sobretudo entre os que nunca gostaram de referendos) a contestar a validade do instituto referendário em si mesmo - mas, aí, é indispensável resistir a tais ataques e proteger a bondade do referendo em si mesmo. O povo não pode ser tratado como um garoto, a quem se furta o "brinquedo" porque não o usou "a contento" do reino.
Esta questão, algo obsessiva, do grau de participação é uma velha questão e um fantasma teimoso que assombra os espíritos da nossa democracia. É um caso típico de sentimentos de insegurança, a dirimir num divã de psicoterapia - acompanhadinhos é que nos sentimos bem.
Aqui há uns anos foi tema central de debate político acalorado: era a altura em que, como remédio, se propugnava a instituição do voto obrigatório, à semelhança do que ocorre nalguns países. A proposta não surtiu êxito. Curiosamente, o tema faleceu e nunca mais se ouviu a renovação de uma tal proposta - digo "curiosamente", porque, de então para cá, a participação eleitoral nunca deixou de baixar comparando eleições do mesmo tipo. Ou seja, a alegada crise da participação não toca apenas o referendo, mas atinge os próprios actos clássicos da democracia representativa, atingindo os seus índices mais expressivos nas eleições europeias. Donde, sustentar-se que os referendos podem acabar, ou devem acabar, porque foi alta a abstenção, é o mesmo que dizer-se que pode, ou que deve, regressar-se à ditadura porque as pessoas se alheiam das eleições.
Nem de propósito, as atenções do mundo foram recentemente dirigidas para as eleições norte-americanas, de que dependia indirectamente o destino do fustigado Presidente Bill Clinton. Ora, num país universalmente saudado pela sua longa tradição democrática e num quadro politicamente tão dramático, qual foi a participação eleitoral dos americanos? Trinta e oito por cento! Nem mais, nem menos: sessenta e dois por cento dos eleitores ficaram em casa - no que, aliás, é uma tradição americana, tão longa quanto a sua democracia.
O que é resultou daí? Ouve choro e ranger de dentes? O Capitólio veio abaixo? O Exército marchou sobre Washington? Os Marines tomaram o poder? Fidel anunciou, da vizinha Cuba, uma próxima invasão contra a "decadência da democracia capitalista"? Analistas e comentadores entraram em depressiva crise existencial?
Nada disso. Apesar da muito baixa participação, as eleições americanas foram recheadas de significado político, que todos souberam ler e quase todos se apressaram a extrair, sob todos os ângulos possíveis e imagináveis. No essencial, significaram o seguinte, que, por sinal, me dá satisfação: em primeiro lugar, os republicanos venceram e continuam maioritários na política americana (porque, na verdade, convém reter que foi o Partido Republicano quem efectivamente ganhou as eleições); mas, em segundo lugar, o eleitorado americano, dando-lhes o triunfo, deu simultaneamente um aviso forte e meteu um claro travão àquela particularíssima tendência republicana que se foi exibindo façanhuda, de tanto escolher como principal façanha o chafurdo na "lingerie" alheia.
O que entre nós parece não se querer compreender, nem aceitar é que a abstenção é também uma forma de votar. Também significa uma atitude, também traduz uma posição legítima e também merece respeito e consideração. Certo que nos esforcemos por altos índices de participação efectiva e de envolvimento directo dos cidadãos - mas não saltemos daí para a ilegitimação das instituições e dos institutos democráticos em si. Independentemente dos resultados e do grau de participação, o referendo tem vantagens e benefícios que nenhuma eleição substitui. Tanto aquando do aborto como agora a propósito da regionalização, nunca o debate exaustivo e o esclarecimento detalhado de questões concretas sobre que importa optar foi tão intenso e tão vasto no nosso país, atravessando toda a sociedade - fico só com pena de que o referendo europeu tenha ficado pelo caminho. E, se agora, por força da matéria (a regionalização) e da sua apropriação partidária, a exuberância da sociedade civil não pareceu tão evidente, o facto é que não deixou de manifestar-se e, aquando do referendo ao aborto há meses atrás, foi mesmo a sociedade civil quem, pujante, tomou claramente a primeira linha.
Ou seja: não vejo razão para pessimismos. No meu sentimento, o referendo veio para ficar. Não há razão válida para o apagar do nosso regime: tem o seu lugar; cumpre o seu papel. Podemos esforçar-nos para fazer melhor, mas não devemos engrossar o discurso dos que querem riscá-lo do mapa. Até porque da análise da abstenção também pode resultar urna leitura mais positiva da política e dos políticos. Um eleitor que não consegue superar as suas dúvidas tem sempre o refúgio cómodo da abstenção; um político, esse tem que decidir. Talvez por aí, pela experiência directa do que é escolher, pelo sabor concreto do que é termos mesmo que optar onde as coisas não são apenas a preto e branco, nos habituemos a respeitar mais a realidade da política, a fustigar menos os políticos que nos servem e a compreender melhor aqueles que, por função, têm as mais das vezes que decidir em nossa representação. Não sempre necessariamente o óptimo - que é absoluto-, mas, na consciência de cada um, o melhor - que é apenas relativo.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 8.Novembro.1998
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