O CDS, a procriação medicamente assistida e a investigação científica sobre embriões


1. O CDS-PP é claramente favorável à regulação da Procriação Medicamente Assistida (PMA). Compreende e identifica-se com muitos casais que a ela têm recorrido e recorrem, subsidiariamente, no plano médico, para superarem situações de infertilidade. E defende, num quadro ético consistente, a necessidade de ser aprovada e publicada legislação específica que termine com situações de vazio normativo, clarifique dúvidas pendentes e dê segurança jurídica quer aos profissionais, quer às famílias na aplicação desta técnica clínica subsidiária.

O CDS gostaria de ter podido votar favoravelmente um projecto de lei regulador da Procriação Medicamente Assistida, nomeadamente um projecto que tivesse sido apresentado por si próprio, ou, uma vez que largamente tributário de um trabalho anterior comum, o projecto de lei apresentado pelo PSD, se este não contivesse pontualmente disposições que não são aceitáveis e a que o CDS não pode ser indiferente.

Aqui, a questão intransponível para o CDS-PP está na investigação sobre os embriões humanos – e apenas aí. Para o CDS, a investigação destrutiva de embriões humanos não é lícita no plano moral, nem jurídico e, portanto, deve ser politicamente rejeitada, com absoluta clareza, aquando da aprovação de legislação que a preveja.



2. Não tinha que ser assim. Um projecto de lei sobre PMA não tem que dispor necessariamente a respeito de investigação sobre embriões, em tudo o que seja estranho ao próprio processo de PMA. Mas a generalidade dos projectos, ao escolherem fazer assim e ao disporem – mal – no sentido de permitir a investigação científica destrutiva de embriões humanos, determinaram ipso facto o voto negativo do CDS-PP.

Na legislatura anterior, quando o Governo de coligação preparava uma possível proposta de lei e pendiam na Assembleia da República dois outros projectos de lei do PS e do BE, foi elaborado sobre estes últimos pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida o Parecer 44/CNECV/04, de 26 de Julho de 2004.

O CDS-PP pode rever-se nos princípios gerais afirmados nesse Parecer: o princípio ético do primado do ser humano sobre a técnica e a ciência (§ 1); o princípio da subsidiariedade das técnicas de PMA (§ 3); a sua aplicação restrita a casais (§ 6); o recurso exclusivo a gâmetas do próprio casal (§ 7); o direito à vida de todo o embrião e o seu enquadramento num projecto parental (§§ 18 e 19); a limitação da investigação sobre embriões ao benefício do próprio embrião (§ 22, 1ª parte); a absoluta exclusão da criação de embriões para fins de investigação científica (§ 25).

O mesmo já não pode dizer-se das várias derrogações a estes princípios fundamentais que eram admitidas nesse Parecer 44/CNECV/04, em termos tais que motivaram fortes divergências entre os conselheiros. Algumas das suas declarações de voto – aquelas com que o CDS-PP mais se identifica – apontam exactamente isso mesmo: as “derrogações” põem em causa e comprometem os princípios cardeais afirmados. O CDS também: defendemos os princípios, não concordamos com as derrogações.

Os projectos apresentados pelos PS, PCP e BE seguem, todos eles, mais as “derrogações” que os “princípios”, indo mesmo para além do admitido no controvertido Parecer do CNECV – a ponto de, em rigor, se colocarem fora dos princípios afirmados e se poder entender que, em concreto, os negam. Por isso, estes projectos de lei da esquerda só poderiam ser rejeitados pelo CDS, nomeadamente por consagrarem a procriação heteróloga (os dos PS, PCP e BE), por admitir as chamadas mães de substituição (o do PS), por apoiarem a PMA em mulheres sós (os dos PCP e BE) e por aprovarem amplamente a investigação científica sobre os embriões humanos remanescentes da PMA (os dos PS e PCP, apontando o BE para uma lei autónoma).

Porém, o projecto do PSD, ainda que balizado pelo Parecer 44/CNECV/04 e sendo melhor que este em tudo o que toca estritamente à PMA, também suscita o voto contra de uma posição personalista como a do CDS, ao admitir a investigação científica sobre embriões (os excedentários e os inviáveis), com o efeito da sua destruição, no interesse dito da ciência.

O óbice para o CDS-PP está sobretudo no n.º 4 do art. 11º e, em grau diferente, no n.º 5, ao permitirem respectivamente a investigação científica que incida sobre os chamados embriões excedentários (sob determinadas condições no n.º 4) e sobre os embriões inviáveis (no n.º 5, em paralelo com células estaminais embrionárias resultantes de aborto eugénico ou espontâneo). Em tudo o mais, de um modo geral, o projecto de lei do PSD mereceria o voto favorável do CDS, que nele reconhece o fruto de muitos debates durante o período do Governo de coligação e da maioria PSD/CDS-PP.

Dir-se-á que é apenas um ponto. É verdade. Mas trata-se de um ponto absolutamente fundamental. E é fundamental, porque toca exactamente em direitos fundamentais, por sinal os mais fundamentais dos direitos fundamentais porque o fundamento de todos os outros: a vida e a dignidade humana.



3. A propósito da questão dos embriões e seu destino, importa ter presente que, quando se fala de um embrião humano, estamos a falar de um ser – humano – e já de uma vida – humana também. É uma incontornável questão de ciência; e de modernidade essencial. Como é sobejamente sabido; e consta dos pareceres relevantes do CNECV e de vários textos internacionais de referência.

Alguns princípios fundamentais estão inscritos na Convenção de Oviedo (Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina) de que Portugal é signatário e que já ratificou, vigorando na nossa ordem jurídica, desde Dezembro de 2001. Veja-se o seu artigo 2.º: “Primado do ser humano – O interesse e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse único da sociedade ou da ciência”. E o artigo 18.º: “Pesquisa em embriões ‘in vitro’ – 1. Quando a pesquisa em embriões ‘in vitro’ é admitida por lei, esta garantirá uma protecção adequada do embrião. 2. A criação de embriões humanos com fins de investigação é proibida.”

Assim, à luz da Convenção de Oviedo e do princípio do primado do ser humano consagrado no seu art.º 2º, não é lícito convocar – por exemplo, para tentar legitimar a investigação destrutiva de embriões – um interesse único da sociedade ou da ciência, acima do interesse próprio do embrião. E também deve entender-se que só é conforme às traves fundamentais da Convenção de Oviedo a permissão limitada constante do n.º 2 do art. 11º do projecto do PSD e que já constava, em termos similares, dos anteprojectos da proposta de lei comum que chegou a estar em preparação: “Um embrião só pode ser objecto de investigação ou de terapia quando estas sejam motivadas por necessidades do próprio embrião e não envolvam um risco desproporcionado para a sua vida.” Toda a demais investigação sobre embriões, que não é fundada em buscar o seu próprio benefício e que representa produzir a sua destruição – isto é, a sua morte – está fora do quadro da Convenção de Oviedo, pois aí não é de todo garantida “uma protecção adequada do embrião”, mas permite-se exactamente o inverso: a sua propositada destruição.

O direito à dignidade humana está ainda consagrado na ordem constitucional portuguesa, nomeadamente nos art. 2º e 26º, sendo, neste último, expressamente referido como limite às técnicas e experimentação científicas. E o direito à vida é afirmado e protegido, pelo art. 24º,1 da nossa Constituição, de uma forma particularmente potente e vigorosa: “A vida humana é inviolável.”

O CDS revê-se, por inteiro, neste singular registo personalista impecável da nossa Constituição e não pode agir contra ele ou ao seu arrepio. Antes lhe cabe afirmar a sua clara e plena potência constitucional.



4. É facto que existem posições diferentes. Mas esta é a posição diferente própria do CDS. Compreendemos que existam posições diferentes da nossa. Mas compreendemos também a nossa própria posição e os respectivos fundamentos. Não concordamos com as outras posições e afirmamos, com simplicidade, a nossa.

Importa ter humildade, espírito de rigor e exigência pessoal na ponderação e discussão de questões como estas, questões postas no limite da vida e da morte, questões no cerne da própria humanidade, que são de enorme complexidade e, às vezes, de extrema dificuldade. Mas, além de em alguns planos da ponderação desta matéria a posição de referência ser bastante clara – quer no plano da ponderação ética, quer no plano constitucional ou do direito internacional relevante –, a posição de princípio personalista do CDS é sempre, em qualquer caso de dúvida, na produção legislativa e na decisão política, a que poderia exprimir-se no seguinte brocardo: “In dubio pro vita.” Importa dizê-lo com total serenidade e clareza. Porque essa é exactamente a posição própria do CDS; e, se for distinta da de outros, é uma das posições que nos faz distintos de outros.

Recuando ao Parecer 44/CNECV/04, revemo-nos directamente, a este respeito, nas declarações de voto dos conselheiros Agostinho Almeida Santos, Marta Mendonça [1], Michel Renaud [2] e Rita Amaral Cabral e no pensamento conhecido de outros. O muito respeito que temos pelo Prof. Daniel Serrão e pelo seu pensamento – além da própria sensibilidade e complexidade da matéria – obrigar-nos-ia sempre a consultá-lo sobre o acerto de, para fundamentarmos uma posição política, podermos citar, fora de contexto, um excerto isolado de uma declaração de voto num parecer.

Numa questão tão fundamental e tão divisiva, numa questão que divide a União Europeia e os seus órgãos, numa matéria que é objecto, por exemplo, de expressa proibição pela legislação alemã e pela italiana, numa matéria sensível de modernidade cujo debate está em aberto e em contínuo, numa matéria que por certo dividiria a opinião pública portuguesa se fosse levada directamente ao seu cuidado como aconteceu recentemente em Itália, numa matéria que dividiu profundamente o CNECV – seria de estranhar que o ponto de vista personalista não tivesse qualquer expressão qualificada na Assembleia da República. Surpreenderia que, diversamente do que se passa em toda a Europa e no mundo, a abertura da investigação científica sobre embriões excedentários ou inviáveis no interesse exclusivo da ciência fosse acolhida em Portugal sem votos contra no Parlamento e passasse porventura de forma inteiramente despercebida, apesar de ser questão fundamental e, em bom rigor, de estar ao arrepio dos princípios estabelecidos na Convenção de Oviedo. E não se entenderia que, neste debate, que está aberto e não acabou, a posição dos que estão do lado exigente do personalismo (e só admitem, por isso, investigação sobre embriões no seu próprio interesse e terapia) não tivesse expressão visível e sensível.

O CDS representa exactamente essa posição personalista – e representou-a bem, por isso, nas votações na Assembleia da República no passado dia 10 de Novembro. O CDS-PP não é um partido auxiliar; tem a sua própria identidade, que não se apagou e não se apaga.



José Ribeiro e Castro
Presidente do CDS/Partido Popular

CDS, 21.Novembro.2005


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[1] Conselheira Marta Mendonça: “Idênticas objecções éticas merecem os pontos 22 a 25 [investigação sobre embriões]. O proposto nestes pontos parece-me inaceitável do ponto de vista ético e claramente violador dos princípios do respeito pela dignidade humana e da sua não instrumentalização. Não basta dizer que não se criarão embriões para investigação. O mesmo princípio em virtude do qual repugna que se criem seres humanos com a única finalidade de serem usados e destruídos para benefício dos seus criadores ou de outros homens, aplica-se aos seres humanos já existentes. O princípio do respeito pela dignidade humana não autoriza a que à violação do direito à vida que decorre de privá-los do direito ao desenvolvimento – já de si eticamente condenável – se some ainda a sua instrumentalização. Não se trata, como por vezes tem sido argumentado, de um mal menor, mas de um mal que se soma a outro mal, porque nenhum ser humano é para outro um meio, nem sequer meio de progresso científico, em virtude precisamente da sua dignidade. Além de que é legítimo pensar que a possibilidade de utilizar para fins de investigação os embriões infelizmente existentes e criopreservados, longe de ajudar a acabar com o problema, tenderá a prolongá-lo no tempo e a agudizá-lo, banalizando a vida humana e derivando dos benefícios de uns o sentido da vida de outros.”

[2] Conselheiro Michel Renaud: “Considero que a investigação científica sobre os embriões (que não se realize em benefício do próprio embrião) é um claro caso de instrumentalização da vida humana. O argumento segundo o qual é melhor e mais digno, para o embrião, servir para qualquer coisa – nomeadamente para o benefício da humanidade - do que morrer sem utilidade nenhuma, não me parece convincente. Se já é uma aberração produzir embriões sem destino parental, isto é, produzir um começo de vida humana se lhe dar a possibilidade de se desenvolver - a utilização desses embriões para fins de investigação volta a introduzir, com a justificação do critério do utilitarismo, o primeiro passo de utilização eugénica da vida humana. Ora, não é indigno morrer, a morte faz parte da vida e da existência humana. Mas utilizar a vida de outros seres humanos destinados à morte contribui para «coisificá-los». A investigação sobre os embriões contribuirá socialmente para a sua coisificação, o que não me parece corresponder ao maior respeito pela vida humana.”

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