O Adelino, nossa referência - a memória dos nossos sonhos


25 anos sobre a morte de Adelino Amaro da Costa

M
ataram-nos o Adelino demasiado cedo. E, pela intensidade e correria do tempo político que lhe foi dado viver, é mais o que dele se conhece porque se conta do que propriamente porque nos deixou escrito. Há muitos escritos seus que não assinou e que escreveu, reviu, editou quase da primeira à última linha: programas, manifestos, textos colectivos de orientação política – era um homem ímpar de pensamento e de caminho colectivo. Mas a maioria dos escritos que assinou, a sua quase totalidade, são marcados pela intervenção e, portanto, pela conjuntura. E, todavia, ainda hoje é flagrante, impressionante, a inapagável marca estrutural que deixou. E que está aí.

Mas, porque foi assim, porque foi muito curta a sua vida, não nos deixou as suas memórias – somos nós que as temos, que as transportamos, que as transmitimos. É a lenda de Amaro da Costa. E poderíamos pensar que a lenda o ultrapassa, como sucede com tantos. Isso já seria, aliás, sinal da sua grandeza, pois só as grandes figuras inspiram as grandes lendas. Mas não é assim. No caso do Adelino, é ele que ultrapassa a lenda.

No Adelino Amaro da Costa, não recordamos apenas um pilar de doutrina ou um chefe político. Mas recordamos muito das suas qualidade humanas e do seu estilo, do seu modo, com a bonomia dos gordos e o temperamento alegre. Sendo um homem de valores personalistas, exigentes, firmes e claros – e, por isso, uma incontornável referência doutrinária de excelência no nosso partido –, era também cultor da moderação como um valor político, intérprete privilegiado do diálogo como método, um apaixonado do debate franco em campo aberto. E, além destas virtudes e talentos democráticos, marcava-o aquela atitude de simplicidade, de acessibilidade, de genuinidade, de autenticidade, de disponibilidade, de lealdade, de proximidade que verdadeiramente cativava apoiantes e adversários.

É por isso, muito pelas suas qualidades humanas, por ser alguém que veio para a política sem deixar de ser a pessoa simples que era e que antes regou a política com a simplicidade dos grandes, que a sua lenda cresceu e é enorme entre nós. Tocou e toca quem nunca o conheceu e mesmo nunca, ou só raramente, o leu. Ouvimos de Amaro da Costa e, quando ouvimos, sentimo-lo como um dos nossos, sabemos que é um dos nossos.

Amaro da Costa não foi passível de arquivo, nem ficou guardado apenas na memória da inteligência. Antes ficou inscrito na memória do coração, naquela memória inapagável do coração, onde nos pertence. Comunica-se em tradição oral constante como uma corrente contínua, ao modo da memória das famílias ou da tradição popular. Uma memória que não se esvai, uma memória que recria raízes. Uma memória que não entristece, mas que alegra e anima. Uma memória que, ainda quando convoca lágrimas pela saudade do amigo, do grande amigo, são lágrimas que não afogam, lágrimas que sorriem até, lágrimas que prometem, lágrimas que regam.

É isso. Ultrapassou a fronteira do silêncio e do esquecimento. Constitui uma fonte não apenas continuamente renovada, mas uma fonte continuamente refrescada. Aponta caminhos. Funda caminhos. Rasga caminhos.



Adelino Amaro da Costa era um cristão, um católico e um personalista. Não o podemos entender sem entender tudo isso.

Tinha uma sólida formação pessoal e doutrinária. A sua serenidade vinha em boa parte daí – só é sereno quem sabe por onde vai, em todo o terreno que pisa. Tinha uma extraordinária capacidade de improviso, mas uma absoluta segurança de rumo. Em cada encruzilhada – e quantas houve no tempo intenso que viveu - , era dos primeiros a encontrar a rota certa. Nunca se perdia. Conhecia bem a sua estrada e a meta que perseguia.

Como personalista, inquieto com a pobreza e o atraso, crente na liberdade, na identidade, na comunidade e na responsabilidade, contra colectivismos e individualismos, animava-o a pessoa como epicentro da política, seu sujeito e seu objecto, sua fonte e seu destino, sua razão de ser e sua razão de fazer. A pessoa, esse ente que é a um tempo indivíduo e comunidade, o ser humano, a pessoa humana, esse cada um de nós, esse ser-se humano com desígnio individual e destino comum. E, por isso, comunicava, procurava construir, como todos os personalistas, que tudo é individual, próprio e livre, mas com uma função social, num quadro público de descentralização e subsidiariedade. Não é só o velho cliché da função social da propriedade – que, aliás, está certo. Mas é tudo, mesmo tudo: a função social da iniciativa, do dinheiro, da riqueza, a função social da empresa, a função social da escola, a função social do Estado, dos municípios, do livre associativismo, dos políticos, a função social da família, da criatividade, da inovação, a função social de cada indivíduo, isto é, de cada pessoa no dinamismo aberto da liberdade individual e da sociedade civil. Por escolha própria nossa, por construção e realização autónoma, por sentido gregário de comunidade – não sob o império impositivo do Estado.

Esse é o seu legado de maior alcance, o seu legado doutrinário de maior futuro, o legado inconcluso de Amaro da Costa, o seu legado por cumprir, o seu legado por fazer.

Precisamos disso.

Neste tempo, que tão frequentemente convoca, por todo o lado, exigências de reforma e de reformismo, essa ancoragem doutrinária é indispensável. São tempos de mudança. Tempos de comunicação global, de mundialização dos espaços de referência, de pluralidade ímpar, de competitividade geral, de desconhecido contínuo, de reafirmação ou reformulação dos paradigmas. E é nestes tempos de mudança que mais nos importa saber os valores que temos e queremos, cultivar um tronco de doutrina. Para podermos fazer toda a viagem, influenciando-a e não sendo apenas levados por ela. Para termos segurança e reconhecermos os nossos durante toda a viagem. Para a conduzirmos e nos conduzirmos. E para garantirmos que o fim da viagem é um lugar melhor do que aquele de onde partimos e que aí reconheceremos o nosso próprio contributo e o nosso registo. Isto é, que nunca nos perdemos. Que descobrimos, que encontramos, que construímos.

São também tempos que pedem alma. Sentimo-lo, ouvimo-lo por todo o lado. Em Portugal que parece desanimado, na Europa que desfalece e hesita, na Lusofonia que espreita e quer afirmar-se, no mundo que declina constantemente a palavra crise.

Para fazermos o que é necessário, neste intervalo de crise e de mudança, para nos mantermos orientados, seguirmos o rumo certo e não nos perdermos, guardarmos o sentido e a coesão por entre o frio império estatístico dos números, persistirmos e nunca desanimarmos, é de referências, de raiz e tronco, de alma que precisamos. Na condução política, nas reformas sociais, na reforma constitucional, nas relações externas, na definição e construção de um novo patamar de progresso e desenvolvimento, de relação e de afirmação.
E alma é o que o Adelino mais nos deixou: ele foi dirigente e militante, o coração e o pulmão do CDS, a sua bomba motriz e o seu fôlego. E é ainda, sempre que o revisitamos - como hoje, como agora –, essa mesma mola, essa mesma lança do sentido moderno, comunitário, livre, empreendedor e solidário que é o personalismo, com arrojo e vontade do futuro.



Quando lembramos Amaro da Costa, é assim. Não ficamos na beira da estrada a desfrutar a memória do que foi; continuamos a pisar a mesma caminhada, uma caminhada que anda, com o olhar, o coração e a vontade sempre diante de nós.

Há sete anos atrás, o meu antecessor, Paulo Portas, a seguir ao Congresso de Braga, decidiu celebrar os 25 anos do partido como o “Ano Amaro da Costa”, celebrando a totalidade da nossa história partidária no CDS/Partido Popular e uma global reconvocação, sem exclusões. Foi uma forma de assinalar, em torno do nosso melhor farol de referência, a nossa reunião no regresso dinâmico à ideia de um grande partido português, democrata-cristão, mobilizado em coesão para servir o futuro de Portugal.

Fizemo-lo, aliás, na altura, de uma forma original – rara, mas bem verdadeira. Não quando completávamos 25 anos, mas exactamente 24, quando o 25º ano efectivamente começava. Como eu disse na abertura desse “Ano Amaro da Costa”, esse modo de o fazermos honrou aquilo que o Adelino mais foi e mais representa para nós. É que ele vai à frente, vai à nossa frente.

Ele não é uma nostalgia, mas uma inspiração. Não é apenas saudade, mas um convite. Não é somente memória, mas um desafio, um permanente desafio. É a nossa memória do futuro.

É a memória de tudo o que está por fazer. É a memória do que temos ainda que fazer, do que temos ainda que cumprir – até sermos a mais forte referência da política em Portugal. É uma memória que aponta. É uma memória que assinala. É memória e chamamento.

É a memória dos nossos sonhos, a memória do nosso projecto, a memória da nossa ambição, a memória do nosso propósito. A memória do partido de que partiu a meio da viagem e que temos de cumprir. A memória da ideia de Portugal – e do mundo – que comunicava, transmitia, partilhava, enraizava. É isso: a nossa memória do futuro. Ou, se quisermos, se formos capazes, se formos mesmo capazes, a memória do nosso futuro.


José Ribeiro e Castro
Presidente do CDS-PP

 Hotel Tivoli, Lisboa, 3.Dezembro.2005

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