Cuba, tempo de vésperas


As notícias de Cuba alimentam as especulações sobre uma possível mudança de regime para breve, mas o cenário real deve merecer atenção aguda e preocupação. O alerta, com carimbo de urgente, chega de quem sabe. Vem de quem experimentou a dura provação dos regimes comunistas e do seu ocaso. O alerta é de Vaclav Havel, o emblemático presidente checo do renascimento democrático, fundador do Comité Internacional para a Democracia em Cuba, organismo que também integro. O apelo é claro: "Alerto para que estas mudanças não representam qualquer transformação substantiva do Estado totalitário e apelo à comunidade internacional para que persista na pressão em favor de uma mudança democrática". Recorda como "a experiência passada quanto a alterações deste tipo, na Europa Central e de Leste, mostra que estas mudanças superficiais agravam tensões e podem potenciar o revigoramento de regimes violadores dos direitos humanos". E insiste na necessidade de todos "apoiarem uma transição pacífica de Cuba para a democracia até que seja verdadeiramente alcançada".

Os comentários informados dos democratas cubanos, do comandante Hubert Matos a Carlos Montaner, passando pelos que sofrem a repressão no interior da ilha, apontam exactamente nesse mesmo sentido de cautela, preocupação e exigência democrática.

A convicção alimentada por muitos tem sido a de que a democracia em Cuba apenas poderá emergir depois da morte de Fidel Castro. É o que chamam de "a solução biológica". Muitos há que tudo resumem a essa fria leitura carregada de cinismo e disso fazem um biombo desculpabilizador para a própria inacção - com Fidel em campo, não vale a pena fazer nada; depois de Fidel, tudo aconteceria em automático passe de mágica.

A sobrexpectativa agora gerada pela doença de Fidel explica-se exactamente nesse quadro. Mas a realidade é bem mais complexa e nada de bom está guardado nesta regência dinástica sumariamente entregue ao irmão Raul.

Sempre resisti a entrar naquele tipo de visão cínica e "biológica". E, embora muito céptico quanto à capacidade do regime cubano em se reformar, creio que seria bem melhor para Cuba e para o povo cubano que houvesse essa coragem e visão de evoluir. Mesmo com Fidel, até porque Fidel - se o quisesse ou fosse levado querê-lo - seria quem, do lado do regime, estaria em melhor condição para conduzir essa evolução. De forma muito limitada, muito tímida, muito incerta ainda, era, aliás, nesse sentido mais aberto e esperançoso que as coisas pareciam caminhar antes do agravamento brutal da repressão na Primavera negra de 2003. E aquilo que a comunidade internacional, com a União Europeia e os Estados-membros à cabeça, deve empenhar-se é favorecer que o regime regresse, ao menos, ao estado em que estava em Dezembro de 2002, quando Oswaldo Payá foi a Estrasburgo receber o Prémio Sakharov.

Não é isso, infelizmente, que tem acontecido - com um sofrimento enorme para o povo cubano e os democratas mais activos, continuamente perseguidos e acossados, centenas na cadeia, arbitrariamente condenados a penas pesadíssimas. Em Janeiro de 2005, contra o voto do Parlamento Europeu, o Conselho da União Europeia decidiu suspender as sanções aplicadas ao regime comunista de Cuba em Julho de 2003, que haviam sido a resposta europeia contra a brutalidade desencadeada pela polícia de Fidel em Março desse ano. Em Junho de 2005, apesar de reconhecer que a suspensão não tivera efeitos positivos, o Conselho manteve a suspensão por mais um ano. E, de novo em Junho de 2006, apesar de continuar a reconhecer a ausência de quaisquer efeitos positivos e de assinalar até registos sensíveis de agravamento da repressão, prorrogou por outro ano mais a suspensão das sanções. A suspensão baseou-se na desculpa apressada de que as sanções não teriam efeito. Mas - pergunta-se - que efeitos teve, então, a suspensão das sanções? O que se passa é um triste alheamento europeu, directamente agenciado pelo governo Zapatero e contando infelizmente com a participação e cumplicidade do Governo português.

Esta complacência é lamentável e tem efeitos terríveis no terreno, de que chegam continuamente relatos inquietantes. O referendo previsto pela Constituição cubana e peticionado pelas mais de 20 mil assinaturas recolhidas pelo "Proyecto Varela" continua bloqueado. O Diálogo Nacional é empurrado para a clandestinidade, o medo e o risco. Da Europa, parlamentares, jornalistas ou voluntários são expulsos ou vêem recusada a entrada no país. São às centenas os presos políticos. As liberdades e garantias fundamentais do nosso quotidiano não existem e as medidas penais apertam. Oswaldo Payá, Prémio Sakharov 2002, continua impedido de sair da ilha e de vir à Europa debater a situação no seu país. As corajosas "Damas de Blanco", Prémio Sakharov 2005, não puderam sequer ir receber o prémio a Estrasburgo. Ao invés, viram a pressão aumentar sobre elas, nos últimos meses, através dos miseráveis "actos de repúdio" e outras manobras de intimidação e ameaça, sob orquestração do aparelho do Partido Comunista Cubano e do Estado de partido-único. Payá, por seu turno, embora ainda fora da cadeia, vê crescer a coacção em seu redor e multiplicam-se nos últimos dias os apelos receando pela sua segurança e liberdade. Outros como Vladimiro Roca, Martha Beatriz Roque, Óscar Espinosa, Laura Poyán, Gisela Delgado Elizardo Sanchez enfrentam risco permanente. São 23 os jornalistas que ainda apodrecem nas cadeias do regime comunista cubano - tudo diante da indiferença quase generalizada da comunicação social ocidental, apesar dos apelos insistentes e qualificados dos Repórteres Sem Fronteiras, que, durante mais de um ano, apontaram a Cuba o título não invejável de "a maior prisão de jornalistas do Mundo". E o rol poderia continuar, em todos os recantos negros dos regimes totalitários da História mundial.

Não são, portanto, necessariamente de esperança estes dias. Antes dias de enorme incerteza e porventura de risco agravado, como alerta Vaclav Havel. O agravamento da repressão cubana em Março de 2003 coincidiu com o desencadear da guerra no Iraque, que concentrou as atenções mundiais. Agora, é a crise no sul do Líbano e no Médio Oriente que centra o exclusivo.

Depende também de nós, portugueses e europeus, aqueles que não tememos a cada esquina, que as portas da liberdade e da democracia possam abrir-se igualmente para Cuba e esse povo extraordinário que é o povo cubano. Depende de não esquecermos, de lembrarmos, de sabermos estreitar os nossos laços e acções de solidariedade com os que, em Cuba, heroicamente persistem, e teimam, e esperam. E sabermos mostrar que o "diálogo crítico" europeu com as autoridades cubanas é verdadeiramente distinto do embargo norte-americano, se abre sobre toda a sociedade cubana e que não estamos nós próprios embargados na nossa lucidez e na nossa disponibilidade.

A liberdade não acontece em automático. Precisa de ser ajudada.



José Ribeiro e Castro
Presidente do CDS-PP

PÚBLICO, 11.Agosto.2006

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