Deserto vivo


Interpela-nos. A vida rompendo no deserto. Voando sobre Shamal Darfur e Gharb Darfur, os Estados a norte e a ocidente do Darfur, ou sobre o Ouaddaï, no Chade oriental, surpreende a vida permanente no deserto. Cidades de 50 mil habitantes como Kebkabyiah, El Geneina ou Abéché, de que, no Darfur, a população duplicou ou triplicou de repente, com o conflito e a fuga ou expulsão das aldeias. Ou a poderosa Al-Fashir, capital do Darfur Norte, com os seus 300 mil residentes, literalmente no coração do deserto.

Impressionam mais ainda as numerosas aldeias, pontuando a mais completa aridez. Muitas aparentemente quietas, abandonadas certamente pela guerra. Outras, com vida e movimento visível. Vemos campos arados, no deserto. As mais das vezes no leito seco dos rios, que só correm nos poucos meses da estação das chuvas. Outras vezes mesmo fora, ali onde diríamos nada ser possível.

O Darfur tem grande beleza. Uma beleza diferente, desoladora. Mas poderosa. Os seus povos são um hino à capacidade de triunfar, ao longo de milénios, sobre e contra a adversidade dos elementos. Um deserto, mais a Norte do que a Sul, do tamanho da França, onde 6 milhões vivem da terra, 30 a 40 por cento nómadas. Uma teimosia que vence.

Vemos a mesma vida romper nos sorrisos e na corrida das crianças, nos lugares de refugiados e deslocados. Ou no rosto amigável e risonho de homens e mulheres, como em tantas regiões pobres de África. É uma poderosa energia: renascer com esperança, com alegria, debaixo da maior devastação e um ror de obstáculos à vista.

Salih Mahmoud Osman é um Fur dessa têmpera. Advogado, activista dos direitos humanos, há duas décadas que defende gratuitamente alvos da arbitrariedade da rede policial, militar, judicial e de segurança do regime autoritário. Com a crise do Darfur em 2003, intensificou a luta em defesa das vítimas. Familiares seus foram mortos, torturados, queimados em suas casas pelas milícias. Ele próprio acabou preso em 2004. Libertado ao fim de sete meses, quando fazia greve da fome e graças à pressão internacional, não desistiu. Continua activo com a SOAT, Organização Sudanesa Contra a Tortura, em Nyala, no Janub Darfur, e em Cartum. Recebeu, no final de 2006, o prémio da Human Rights Watch. Poderia ser um bom Prémio Sakharov. Hoje, é também deputado. Estivemos com ele na delegação da União Europeia em Cartum e com outras figuras dessa sociedade civil emergente, querendo romper o deserto do regime de al-Bashir em luta pelo estado de Direito. Grandes mulheres também, como Aisha Abubakr Subiara ou Safaa Elabig Adam.

Não é só na política. É na sociedade civil pelos direitos cívicos. Há energia a rasgar o deserto. Também na vida comunitária. Em Kebkabyiah, vimos projectos sociais de ONG internacionais em parceria com outras locais, que, assim, encontram condições para se desenvolver. Quando a comunidade internacional partir, importa manter o intercâmbio, reorientar o apoio. Os internacionais somos nómadas. Não podemos deixar só o deserto atrás de nós.

Bruxelas, 6 de Julho de 2007

José Ribeiro e Castro
ex-Presidente do CDS, eurodeputado

PÚBLICO, 8.Julho.2007

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