Na fronteira dos sonhos


Regresso a El Geneina, a capital do Gharb Darfur, nossa base nestes três dias.

Esta palavra “a capital” tem que ser entendida na cor local e no ambiente subdesenvolvido, quase desértico do Sahel. Desolador aos nossos olhos.

Para os nossos padrões urbanos, temos que imaginar o mau. Depois, pensar em algo mesmo muito mau. El Geneina é ainda pior que o pior. Não há um metro de alcatrão nas ruas. Só uma estrada alcatroada em 500 metros numa das saídas. Tem aeródromo, hoje muito movimentado em virtude da crise e da presença internacional. Não há saneamento básico, nem redes de água ou energia. O mercado está abaixo de muitos padrões africanos que já vi. O meio de transporte dominante é o burro, para quem não anda a pé. Vi grupos de criança vindo de escolas, mas não há vestígios de outros serviços sociais, à parte as mesquitas e os aquartelamentos da polícia e segurança nacional. É difícil intuir de que vive a economia local. Mas a cidade ainda é grande e há visível crescimento urbano, construções em tijolo cru. É a presença internacional que alimenta este “crescimento” urbano. No meio, casas muito pobres de adobe e palha, de deslocados, fugidos ao conflito. El Geneina está rodeada de campos de IDP (internal desplaced persons no jargão internacional), de que ontem visitámos Kindring 1 e 2. Mas muitos fugitivos foram directamente alimentar a desolação “urbana”. Só no Darfur Ocidental há 150.000 deslocados directamente nas vilas e cidades, fora dos campos.

A cidade de El Geneina é o centro de uma importante operação do Programa Alimentar Mundial, que nos aloja nos contentores do seu compound. É muito modesto, mas manifestamente melhor que toda a gente que vemos na cidade. Só o centro do PAM em El Geneina movimenta 10.000 toneladas de alimentos todos os meses e tem garantido a sobrevivência de 650 mil deslocados em Oeste-Oeste Darfur. A parte mais oriental do Darfur Ocidental está integrada na operação do Darfur-Sul e é conduzida a partir de Nyala, onde fizemos uma escala no primeiro da. Os deslocados internos produzidos pelo conflito no Darfur ultrapassam os 2,5 milhões.

O Gharb Darfur faz fronteira única com o Chade, onde passámos hoje o dia, vendo como a crise do Darfur transbordou, cruzando-se com outros conflitos, próprios do Chade. Chade e Sudão acusavam-se mutuamente de apoiarem e darem guarida a rebeldes contra os respectivos governos. Os presidentes Idriss Deby (Chade) e Omar Al-Bashir (Chade) assinaram um acordo em Maio. Caberá ver os seus efeitos, assim como os dos últimos acordos internos no Sudão.

Escalámos Abéché, capital da província de Ouaddai. O presidente da Câmara, Mahamat Seïd Haggar, parecia orgulhoso da sua cidade ao receber-nos. Tinha razões para isso. Muito a correr e vista do ar, pareceu melhor que El Geneina.

Voámos mais para sul, para Goz Beïda, capital do Dar Sila, mais pobre e muito mais pequena que Abéché, mas com um “crescimento urbano” segundo o mesmo padrão de El Geneina: refugiados, deslocados e presença internacional.

Sobrevoámos Kibigou, um campo para refugiados sudaneses – há 250.000 nas regiões fronteiriças do Chade. E visitámos Koloma, com deslocados internos chadianos. São 140 mil como efeito colateral do vizinho Darfur.

Contaram-nos, homens e mulheres, como tinham sido atacados há poucos meses por “milícias árabes”, vindas do Sudão, que destruíram, incendiaram, mataram e pilharam, roubaram bens e gado e ainda dominam as suas terras. A aldeia dos que ouvimos está a 45 km de Goz Beïda. Quis saber por que ainda lá estavam “os bandidos” e se não havia polícia ou militares para repor ordem, garantir segurança. Riram-se muito. Olhando para as autoridades chadianas, não responderam.

Mahamat Ali, secretário-geral do Departamento, e o deputado Mahamat Adef confirmaram a história. Apontaram o dedo aos célebres janjaweed, “armados pelo governo do Sudão”. Perguntei se a ameaça ainda existia, depois do tal acordo recente dos presidentes Deby e Al-Bashir. Contaram que os janjaweed estão a ser “integrados” pelo Sudão como “guardas-fronteiriços”. O comandante nigeriano da AMIS em El Geneina, o “coronel-pregador”, já nos tinha referido o mesmo, ontem, com ironia. E relatórios internacionais também o referem, sem ironia. Mas, para segurança das regiões chadianas afectadas, não há força da AMIS, nem mesmo que só de “pregadores”.

Saindo de Koloma, quis saber de um rapazito de 13 anos se ia à escola. Moussa disse-me que não. Explicaram-me que não há escola no campo de deslocados. Só a escola corânica. Fiz a pergunta clássica: “o que queres ser quando fores grande?”. Moussa não hesitou: “adjunto do imã numa mesquita”.

Nos campos de Kindring 1 e 2, em El Geneina, há escolas. Rudimentares. Visitámos o projecto da Save The Children, uma ONG integrada na operação internacional humanitária. Tinha feito, ontem, ali, a mesma pergunta a Nayma, Mohamed, Yusuf e Amin, com idades entre os 12 e os 14 anos. Mohamed e Amin estavam juntos: ambos queriam ser administrativos. Yusuf, rindo muito, queria ser de uma ONG internacional. Nayma não sabia ou não quis responder. Vi-a, pouco depois, com o filho ao colo. Já era mãe.

Moussa, no Chade, ou Nayma, Mohamed, Yusuf e Amin, no Sudão, têm que esperar muito, para cumprir esses sonhos ou outros. Não só a paz no Darfur. Mas o desenvolvimento das suas terras.

El Geneina, 2 de Julho de 2007


José Ribeiro e Castro
ex-Presidente do CDS, eurodeputado

PÚBLICO, 3.Julho.2007

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