Tudo para correr mal


A crise do Darfur é mais complexa do que frequentemente a vemos apresentada. Não é só o choque entre milícias árabes, Janjaweed, e “africanos”. E não tem nada a ver com diferenças religiosas, como existem no conflito do Sul do Sudão. Aqui, são todos muçulmanos: árabes e não-árabes, nómadas e agricultores.

No Darfur, pode dizer-se que estava tudo reunido para correr mal. E a complexidade não tende a diminuir.

Estão lá as diferenças étnicas e de modos de vida. Há os árabes, predominantemente nómadas, abbala (criadores de camelos) ou baggara (criadores de gado), com diferentes tribos e clãs: os Targam, os Saada, os Salamat, outros ainda. E há os “africanos”, predominantemente sedentários e agricultores: os Fur (Dar Fur quer dizer “país dos Fur”), os Massalit, os Zaghawa. Anteriormente partilhando, hoje disputando, os recursos muito limitados de um vasto território.

Há um quadro crónico de atraso, mais de um século de indiferença e abandono pela administração de Cartum. Era já assim sob domínio egípcio-britânico desde o final do século XIX e da incorporação do Darfur no Sudão em 1916: os awad el-beled (filhos do país) distinguiam-se dos awad al-gharb (filhos do oeste). E o quadro não se modificou com a independência do Sudão, em 1956: tudo para as províncias centrais do Nilo, nada para as regiões remotas, como Darfur.

Há a instabilidade geral do Sudão, sucessão de governos autoritários, golpes de Estado e uma longa guerra civil: a crise da Eritreia no Leste, o prolongado conflito no Sudão Sul e, agora, o Darfur, a Oeste. Só não houve guerra em onze dos 51 anos que o Sudão leva de independência.

Houve a terrível seca de 1983/84, provocando a grande fome de 1984/85 em toda a região que se estende até à Etiópia: mais de um milhão de mortos no total, cem mil só no Darfur. As populações mais atingidas foram as nómadas. E o uso da terra escassa nunca mais estabilizou de então para cá.

Há os vizinhos do Darfur: o Chade e a República Centro-Africana, com conflitos de contágio recíproco nas zonas fronteiriças, e sobretudo a Líbia e a ideologia da supremacia árabe. Foi Kadhafi que treinou e armou as tribos árabes do Norte e do vizinho Chade, para impor em todo o Sahel a sua “cintura árabe”. A sua Legião Árabe foi derrotada pelo Chade em 1987, mas esses legionários do arabismo ressurgiram agora na crise do Darfur: são largamente os Janjaweed.

Há as tácticas do Governo sudanês, instrumentalizando conflitos étnicos e divisões da população. Enfraquecido militarmente pelo conflito no sul do Sudão, foi o Governo que lançou a brutalidade dos Janjaweed contra a rebelião dos “africanos” do Darfur em 2003. A estratégia de fraccionar continua. Alimenta a fragmentação dos grupos, a seguir ao DPA (o Acordo de Paz do Darfur de 2006), mas o feitiço pode voltar-se contra o feiticeiro. Hoje, há árabes contra árabes e contra o Governo e “africanos” contra “africanos”, diferentes facções dos movimentos rebeldes. O puro banditismo cresceu. Não pode excluir-se o risco de uma “somalização”, o império pulverizado dos “senhores da guerra”.

Há o território difícil de controlar – uma França inteira, quase seis vezes o tamanho de Portugal, para 7 mil homens da AMIS – com uma população em desordem total: 2,5 milhões de deslocados e 400 mil refugiados, num total de 3 a 3,5 milhões de habitantes estimados. Destes, 30 a 40 por cento são nómadas. E não vai ser fácil o regresso dos agricultores a terras que, entretanto, foram ocupadas por nómadas, pressionados pela desertificação.

Há o quadro internacional, com a China e seus interesses a proteger sistematicamente as autoridades do Sudão contra sanções e medidas mais enérgicas da comunidade internacional.

Há os mandatos frágeis, claramente insuficientes, das forças de paz internacionais. Agora, queixa-se a AMIS da União Africana. Depois, veremos o que irá realmente passar-se com a “força híbrida” ONU/AU – um súbito “coelho da cartola” político, mas um conceito operacional novo que levará tempo a definir e a aprender.

Há o quadro político complexo do Sudão, na sequência do CPA: o Acordo de Paz Compreensivo de 2005, que trouxe a paz ao sul do país. Com eleições gerais previstas para todo o Sudão em 2009 e referendos apontados para 2010 no Darfur (DPA) e em 2011 no Sudão Sul (CPA), o panorama político tem muitas incertezas pela frente. Para a disputa eleitoral de 2009, não é possível antever como casarão os movimentos rebeldes do Darfur com os partidos tradicionais e com o SPLM do Sul, hoje também no Governo de unidade nacional.

Está realmente lá tudo para correr mal. O que explica bem aquilo que, à distância, anos que passam com tudo na mesma ou pior, tanto nos surpreende e indigna.

Factores positivos? Também há: a atenção internacional, a possível mudança da atitude chinesa e uma sensível fadiga da guerra.

Vimos acontecer noutros sítios: ao fim de largos anos de guerras e conflitos, todos os actores, internos e externos, ficam fartos da guerra e dispõem-se a querer e a aceitar o que, noutro quadro, nunca aceitariam. Isso pode favorecer uma real oportunidade para a paz, mais do que uma mera “vontade de paz”, sempre frágil para os cépticos.

É aí que entra o DDD-C, o processo de Diálogo Darfur-Darfur, que procura trazer à recomposição social e política da região sociedade civil, líderes tribais, grupos de mulheres, outros agentes, saindo do quadro estrito dos rebeldes, grupos armados e suas facções, que tem sempre o risco de uma armadilha. Não é só a paz das armas, mas a estabilização social.

Impressionou-nos muito o seu coordenador, Abdul Mohammed. Estivemos com ele, ontem ao fim da tarde, em El Geneina, antes do recolher obrigatório. Do seu sucesso depende em larga medida que as coisas corram bem, onde tanto se juntou para tudo correr mal.

El Fashir, 3 de Julho de 2007


José Ribeiro e Castro
ex-Presidente do CDS, eurodeputado

PÚBLICO, 4.Julho.2007

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