Salih, a voz do deserto


Falamos demasiado de travessias do deserto. Sem sabermos o que é. Há tempos e lugares onde a expressão nada tem de ligeiro: não é figurada, mas duramente real. Tempos e lugares onde o deserto se estende, esmagador, por longos anos e se afunda no vazio desolador de vastos territórios, extrema solidão. Aí, a coragem dos que atravessam os autênticos desertos exige outra densidade, outra temperança, outra fibra: não só folclórica e circunstancial, antes profunda, grave, autêntica.

Salih Mahmoud Osman é um homem assim. Conhecemo-lo quando fomos ao Darfur. Advogado, há vinte anos que luta pelo seu povo. Mais arduamente, desde que o mundo parece ter desabado sobre a gente a que pertence, tocando o genocídio e desafiando uma vez mais a (in)sensibilidade, a (in)consciência, a (in)capacidade de África e do mundo.
 

Salih é um lutador, mas não é um combatente. Ao apresentar a sua candidatura ao Prémio Sakharov, quisemos destacar a voz dos não-combatentes, a voz mais esquecida, a única voz que poderá trazer alguma vez solução duradoura. Sabemos de grupos e tribos, de rebeldes e milícias, de tropas sudanesas e forças internacionais. Mas... e a gente comum? O quê dos que sofrem continuamente debaixo das balas? O quê daqueles que são quase todos?

Salih vem daí. A sua arma é a palavra. A palavra do advogado e do activista cívico. A palavra que os da guerra querem calar. O Governo sudanês meteu-o na cadeia, de onde saiu após longa greve da fome e pressão internacional. Também porque os acordos de paz na guerra civil com o Sul, o levaram, num quadro precário, ao reformado Parlamento sudanês. Entretanto, sofreu a brutalidade das milícias, que lhe perseguiram e queimaram até à morte familiares.

Salih é preto. Digo-o para benefício de James Watson. E irradia luz. A luz de quem conhece o seu caminho. A luz de quem aceita, na maior adversidade, ser farol de esperança da sua gente anónima. Falámos com ele em Cartum em 4 de Julho. Apercebemo-nos como era o ângulo que faltava. O ângulo da sociedade civil. Anteontem, o Parlamento Europeu apoiou a proposta dos que lá estivemos. Acrescentou mais um porta-voz, tão simples quanto poderoso, à lista dos que clamam por paz e justiça em Darfur e esperam acção determinante da comunidade internacional.

Reconhecemos Salih Mahmoud Osman como porta-voz do Sudão que sofre, representante civil do Darfur apenas civil, advogado dos comuns. O Prémio Sakharov 2007 distingue essa voz do deserto. Na crua e teimosa brutalidade do drama que ali se arrasta, não é muita coisa. Mas é o máximo que podíamos fazer. No dia em que todos fizerem o máximo ao seu alcance, nesse mesmo dia o drama de Darfur acaba. Oxalá! Inch’Allah.


José Ribeiro e Castro
ex-Presidente do CDS, eurodeputado

PÚBLICO, 27.Outubro.2007

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